Se a tendência generalizada a uma especialização descontextualizada (e portanto pretensamente auto-suficiente) invade a formação musical de maneira geral, não é de se surpreender que sejam cada vez menos enfatizadas nos estudos sobre essa arte tanto sua abordagem como linguagem quanto sua apreciação crítica materialista, incluindo as formas do engajamento político mais pertinentes a ela.
Em um trabalho recente (De Bonis, 2012) propus a abordagem desses problemas em uma argumentação conjunta, afinal sempre me pareceu claro que, das abordagens possíveis da música em suas especificidades, a visão materialista sobre sua história é imensamente enriquecida pela analogia (pela comparação crítica) com as diversas formas de linguagem. Ficam mais claras nessa abordagem as diferenças essenciais entre as diferentes práticas que entendemos como linguagens, de modo a definir melhor em sua imensa variedade o campo de ação da linguagem musical.
Levando em conta o grau de generalização que é necessário tomar para que uma abordagem como essa faça sentido, já não é incomum (embora não seja consensual) a apreciação mais clara de algumas características distintivas essenciais da linguagem musical. Entre elas, e de especial interesse nesse caso, a indefinição na operação semântica (seja em associações convencionadas ou em imitações de sons pré-existentes), cuja ênfase na composição musical é substituída pela construção “sintática”, pela operação estrutural pura e simples, deixando em aberto a operação com o significado – que pode vir a ser privilegiada na associação do discurso musical com qualquer outro campo lingüístico mais diretamente carregado de implicações semânticas (não apenas a linguagem verbal).
Da mesma forma, por via contrária, é revelador o retorno à abordagem lingüística da música na consideração de suas funções possíveis no engajamento político – assunto que eventualmente retorna à pauta no meio dos debates da música erudita brasileira, poucas vezes com a clareza que o tema merece. Afinal o discurso musical em si não carrega necessariamente a conotação que se intente. É em associação com outras linguagens que o discurso musical pode vir a ser profundamente impactante – e de fato foi, em muitos casos, imprescindível – em funcionalidades as mais diversas e engajamentos das mais distintas ordens.
Um exemplo simples pode ilustrar essa discussão de forma breve e direta: a peça para coro LIFE: madrigal (1971), de Willy Corrêa de Oliveira [1938-] (sobre poema de Décio Pignatari [1927-2012]), que tece uma longa e abstrata série de intervenções texturais e polifônicas ladeadas, de um lado (ao início), por uma citação de um madrigal renascentista (de Carlo Gesualdo [1566-1613]), e de outro (em seu encerramento) por uma citação de um refrão de hino protestante, “Glória, glória, Aleluia”. Esse procedimento recorrente na obra de Willy, que entendemos como uma forma de metalinguagem, está intimamente ligado à proposta de uma possível intenção semântica na música erudita desde meados do século XX (e também fortemente associada à obra do compositor belga Henri Pousseur [1929-2009]), com a recuperação de materiais de origens identificáveis como uma forma de recuperar um substrato “linguístico” compartilhado em uma época de crise da linguagem musical comum. Os fragmentos citados não surgem à maneira de uma colagem, mas como matérias-primas da obra, por mais transfigurados que se apresentem em meio ao discurso. A obra de Willy naquela época e a sua relação estreita com a poesia concreta merece um comentário, que retomamos aqui.
Willy há cerca de 50 anos
O compositor brasileiro Willy Corrêa de Oliveira sugere em sua primeira “biografia conjectural” que algumas partituras e discos trazidos de uma viagem à Europa por seu colega Gilberto Mendes em 1959 (contendo obras de Webern, Stockhausen, Boulez, Nono) foram recebidos inicialmente com escárnio, inclusive com a confecção de paródias (estridentes, e acompanhadas de estapafúrdias justificativas matemáticas). “E ríamos. Mas, pouco a pouco, o riso menor, desaparecendo, o pejo se apagando e fui eu quem caiu em sua graça” (Oliveira, 1998a, p.6). O ambiente cultural entre Santos e São Paulo, nesta época, é lembrado como de uma efervescência que faz corpo com essa renovação, com a busca de novas soluções que acompanhem as descobertas artísticas mais contundentes. “Importantíssimo naquele momento, o contato com os poetas concretos (que me ofertaram Joyce e Mallarmé), e a amizade diária de Gilberto Mendes, Rogério Duprat, Gastão Frazão, Roldão Mendes Rosa, Marcelino – o escultor; o Clube de Cinema de Santos” (Oliveira, 2006).
Nesse momento surge a oportunidade da sua participação no festival de Darmstadt, com a concessão de uma bolsa de estudos, para o contato direto com as novas referências almejadas, em particular com Henri Pousseur, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio, Luigi Nono. De duas idas ao festival (em 1962 e 1963) Willy retorna com a influência marcante de Henri Pousseur. “[George Olivier] Toni e Pousseur foram, verdadeiramente, meus mestres, o que me evita sobrevalorizar o autodidatismo” (Oliveira, 2006). Antes do amadurecimento e da incorporação plena de uma proposta metalinguística como a de Pousseur, seria necessária no entanto uma fundamentação nova, uma reavaliação detalhada propriamente, sobre a história da música erudita, o que se mostra nitidamente na obra de Willy alguns anos depois, no início da década de 1970. Se o jogo metalinguístico está presente em sua produção da década de 1960, é ligado a outras influências do repertório vivenciado em Darmstadt, a saber, o happening, o teatro musical, a música aleatória, as operações de indeterminação e improvisação (junto à influência de John Cage), ao lado de uma provocação ácida do meio musical, do ambiente dos concertos, do “gosto” duvidoso predominante quando este se abandona à repetição obstinada de obras consagradas do século XIX. Se Willy compartilha esse espírito provocador, na época, com os representantes da “poesia concreta” de São Paulo (Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari), é a partir de sua influência que ele chega a uma nova referência, “uma descoberta tão incrível quanto foi a de Chopin”, na literatura de James Joyce. Willy comenta nas Cinco advertências sobre a voragem seu encantamento pela imaginação estrutural de Joyce no planejamento do Ulysses, no sentido de cada “técnica precisa para cada capítulo” dentro desse planejamento, na riqueza “polifônica” do material literário, na rede de relações intersemióticas, expandindo em seguida o comentário para o Finnegans Wake (Oliveira, 2010, p.65-77). A idéia-força de uma composição musical que incorporasse a influência da obra de Joyce amadurecera em Willy antes de seu contato com Pousseur – como já demonstra uma das partituras que ele leva ao Festival de Darmstadt, Um movimento vivo, sobre poema de Décio Pignatari.
Influências concretas
A influência dos poetas concretos paulistas sobre a obra de Willy se mostra diretamente não apenas na utilização de seus textos, mas na modificação dos procedimentos da composição vocal de modo geral. Os poetas concretos já levantavam em seu “plano-piloto para a poesia concreta” a ideia de isomorfismo (derivada da psicologia da Gestalt) em lugar da relação entre forma e conteúdo na narrativa tradicional.
Ao conflito de fundo-e-forma em busca de identificação, chamamos de isomorfismo. paralelamente ao isomorfismo fundo-forma se desenvolve o isomofismo espaço-tempo, que gera o movimento. o isomorfismo, num primeiro momento da pragmática poética concreta, tende à fisiognomia, a um movimento imitativo do real (motion); predomina a forma orgânica e a fenomenologia da composição. num estágio mais avançado, o isomorfismo tende a resolver-se em puro movimento estrutural (movement); nesta fase, predomina a forma geométrica e a matemática da composição (racionalismo sensível).
(Campos, Pignatari, Campos, 1975, p.157).
Na construção do poema, chamam a atenção para as inter-relações estruturais entre a semântica, a visualidade dos signos e a fonética – em tendência defendida como “verbivocovisual”, a partir de termo cunhado por James Joyce.[i] O manifesto “por uma nova música brasileira”, de 1963, de que Willy é um dos signatários, acusa a influência direta, inclusive remetendo o leitor ao conceito de isomorfismo no “plano-piloto para a poesia concreta”.[ii] A analogia não é direta, no entanto: trata-se aqui de uma espécie de transposição intersemiótica, em que a forma de uma obra musical é construída fazendo referência a outra obra de arte, autônoma, de acordo com sua forma poética particular. A novidade da proposta estaria na busca de poemas que não se estruturassem segundo rimas ou métricas regulares como na narrativa tradicional: a busca de novas soluções formais e estruturais na poesia poderia fomentar as novas estruturações buscadas pelos compositores de vanguarda, se os poemas refletissem de alguma forma na estrutura musical a estrutura poética. Se nos poemas concretos a noção de isomorfismo diz respeito ao “conflito de fundo-e-forma” inerente ao poema, na música de Willy, para além do isomorfismo na estrutura musical (que de resto já permeia a composição musical há séculos) traça-se em diagonal o isomorfismo poesia-música, em uma correspondência de estruturas e significados entre dois corpos relativamente autônomos. Essa proposta se aproxima ainda da de Boulez, que reforça a relação fonética do poema com o pensamento timbrístico na composição, além de apontar para a derivação de uma estrutura musical em livre analogia com uma estrutura formal visual no poema:
se escolho o poema para instaurá-lo como fonte de irrigação de minha música e criar assim um tal amálgama que o poema se encontre como “centro e ausência” do corpo sonoro, então não posso me limitar apenas às relações afetivas que essas duas entidades mantêm entre si; então, impõe-se um tecido de conjunções que comporta, entre outras, as relações afetivas, mas que engloba, por outro lado, todos os mecanismos do poema, desde a sonoridade pura até sua ordenação inteligente (Boulez, 1966, p.58).
LIFE: madrigal
Em 1971 Willy compõe a peça Life: madrigal, para coro, sobre um poema de Décio Pignatari. O poema de Pignatari se desenrola em seis folhas, partindo de um traço vertical que se desenvolve como motivo gráfico até chegar à palavra LIFE, tal como é tipografada no título da revista americana. O traço vertical inicial (próximo ainda da grafia do “aleph”, primeira letra do alfabeto árabe), no contexto do poema, é interpretado como a letra I, e é por uma gradual acumulação de variações gráficas sobre ele que se forma a palavra: na primeira página I, na segunda L (a adição de um traço menor na vertical), F (inversão do anterior com adição de mais um traço horizontal, menor ainda), E (mais um traço horizontal, ou ainda, a somatória dos dois signos anteriores), o ideograma chinês 日(com adição de mais um traço vertical), e por fim a palavra LIFE (o poema, em sua disposição original, é apresentado nas páginas seguintes).
Interpretando os materiais gráficos do poema à maneira de motivos musicais, podemos nomear o traço vertical inicial como sendo um motivo A, e o traço horizontal como um motivo B. As letras, assim, corresponderiam à seguinte variação motívica:
I A
L A+B
F inversão de A+B acrescida de um B’
E A+2B+B’
日 2A+2B+B’
O ideograma 日 corresponde à palavra sol (no chinês), remotamente originado de pictogramas circulares com um ponto no meio (veja-se Campos, 1977, p. 262). O poema mostraria como as palavras “vida” em inglês e “sol” em chinês se originam nos mesmos sinais gráficos, para além da identidade semântica. Ele é construído sugerindo um movimento de formação das palavras, como etapas da vida, da criação, com um signo por página, cada página correspondendo a uma etapa desse processo. O poema é pensado assim como uma forma de vida, com seu processo de formação (a partir dos elementos mais básicos) distendido no tempo; o processo é auto-explicativo e auto-referente, culminando na palavra “vida”. Outras leituras ainda são possíveis, como por exemplo a partir da simetria irradiada pelo sol (o ideograma 日): antes e depois dele as mesmas quatro letras ocidentais, desorganizadas de início, e estruturadas em uma palavra com significado após a passagem por ele. Ou ainda, em um certo sinal dramático, a palavra “hilfe”, “socorro” em alemão, termo mais próximo da disposição inicial das letras (I, L, F, E), ainda completado pela sugestão do H como letra ocidental mais próxima daquele ideograma.
O grito de socorro encontraria um eco na citação escolhida por Willy como material básico para a peça: os vários “Ahi”, gritos que antecedem o lamento “che m’ancide”, como ecos de crimes e torturas na mente de Carlo Gesualdo, no madrigal Moro lasso (do sexto livro de madrigais, de 1611).
O fragmento de Gesualdo, para além de sua riqueza harmônica (nas resultantes de uma polifonia cheia de cromatismos), surge como a origem da criação da obra, da vida do discurso. É o traço primeiro na escrita da peça, do qual se desenrolará sua estrutura (em relação direta com o I do poema), mas também pode ser lido como uma representação histórica: o fim da Renascença como berço do pensamento harmônico e de uma escrita mais livremente cromática, elementos essenciais para a estruturação do discurso desde então. Para além da formação do sistema tonal, vem à mente a profunda identidade sentida com a música de Gesualdo por um compositor como Stravinsky em pleno século XX. Pesa aqui o distanciamento temporal do material musical evocado, convidado a ser ouvido em sua importância histórica mas em perspectiva sincrônica, em diálogo com a nova estrutura, e não diacrônica. Essa fronteira, que nem sempre é claramente definida no caso de Stravinsky, é o ponto de partida na obra de Willy: nunca se confunde a citação com o novo discurso.
A forma da peça é pensada como uma transposição da forma do poema em música, isomorficamente. Como uma segunda versão, musical, do poema (como deixa claro o título). Não há na peça a acumulação de motivos como na solução gráfica do poema. No campo visual o poema já é isomórfico, na identidade entre os signos, sua disposição gráfica e seu significado. O campo sonoro é deixado de lado nessa estrutura, já que a identidade entre os signos das diferentes línguas nesse caso é gráfica e não fonética. A obra de Willy comenta o sentido formativo do poema até a formação da palavra “life”, percorrendo as etapas da criação da palavra, representando musicalmente estágios da vida sobre os fonemas do texto pronunciados em inglês. Ela corresponde assim a uma leitura do poema como um todo, retrospectivamente, já que tanto a língua inglesa como a compreensão dos sinais como partes da palavra “vida” só ocorrem no momento final da leitura do poema. A relação com o texto ocorre no nível da estrutura, só podendo portanto ser apreendida com o prévio conhecimento do texto.
A peça de Willy se divide em seis seções, uma para cada página do poema: portanto, uma para cada das letras I, L, F, E, uma para o ideograma 日, e uma para a palavra LIFE. O isomorfismo mais imediatamente aparente consiste na identidade fonética e formal por toda a peça com cada momento (cada página) do poema. As únicas citações ouvidas na peça estão em seus extremos: todo o discurso se desenrola entre as duas, tornando mais aguda sua distinção semântica e sua diferença estrutural.
Ciclo de vida
Em publicação paralela à partitura (Life: madrigal, comentários e reduções para dois pentagramas), Willy coloca que a primeira seção “tem algo de nascimento dentro do espírito da peça”; cada seção da peça corresponde a uma fase da vida, em isomorfismo com uma leitura semântica do poema. Nesse sentido a primeira seção é a primeira infância da peça.
Willy comenta que o fragmento de Gesualdo é o equivalente à letra I do poema, como material básico para o desenvolvimento musical. Na forma da peça, contudo, ele pode ser visto como uma introdução, ou no mínimo como a abertura da primeira seção.
Há uma relação direta com o fragmento de Gesualdo não apenas pela tríade aumentada, mas também pela pronúncia inglesa da letra I, idêntica aos gemidos do madrigal. Desenvolvendo a sugestão semântica do fonema, nessa seção a partitura pede que uma contralto solista emita a letra eroticamente, repetindo-a “a piacere, como se estivesse atingindo o orgasmo sexual”. Esse elemento pode ainda sugerir uma leitura dessa seção como ligada à origem da vida, ao ato da reprodução.
A segunda seção (L, correspondendo ainda a uma fase formativa, uma segunda infância) ocorre em contraste mais acentuado com a citação de Gesualdo, em polifonia mais linear, trazendo em comum com ela apenas as oscilações de segunda menor. Seguindo a interpretação fonética do trecho anterior, duas leituras se propõem a partir da pronúncia da letra L como no inglês. Em ligação com a interpretação coital da seção I, a seção L poderia ser uma representação da fase oral, num jogo de significados com o prazer oral – sugerida ainda pela ação da língua na produção desse fonema. Na peça, a partitura sugere em um dado momento que o cantor proceda “como se estivesse gargarejando” utilizando a letra L, seguindo uma sugestão gráfica de alturas. A sugestão aqui poderia ser da formação da linguagem, da produção dos primeiros fonemas articulados.
A zona seguinte (F, correspondendo à adolescência) é um pouco mais longa, “como resultado da entrada de mais um componente gráfico”; se cada seção corresponde isomorficamente a um momento do poema, quanto mais sinais gráficos no papel, maior a duração da seção. A seção é construída como uma reflexão harmônica, de clusters a uma série de acordes em “dupla polarização”, em conflito entre ré e mi. Sobre a pronúncia inglesa da letra F, há um largo momento de variações rítmicas sobre alturas indefinidas. É o clímax do desenvolvimento motívico e textural da peça, a seção estruturalmente mais elaborada e variada. Sua maior dramaticidade e concentração de tensões e contrastes corresponderia ao espírito de descoberta da adolescência.
A seção E, correspondendo à idade adulta, é inteira composta por variações sobre a citação de Gesualdo. Em um último momento desta seção ocorre uma referência a um procedimento dos madrigais renascentistas, as oscilações em terças paralelas “como um projeto semântico, não harmônico: os madrigalistas utilizavam estes acordes para significar o amor”.
A seção equivalente ao ideograma 日 é uma montagem (a cargo do regente) dos materiais não-cantados utilizados na peça: gemidos sexuais, risadas, ruidagens a partir das consoantes do texto, o gargarejar sobre a letra L. O comentário à partitura sugere que a seção soe “cheia de vida”, criada no instante pelos intérpretes, uma irradiação de energia criativa (como a solar no ideograma) – pode ser lida como representação do destino, ou da indeterminação no correr da vida. Nessa seção de improvisação dirigida, pode-se ver ainda a analogia entre essa irradiação solar e a função do regente (a mesma que por vezes, patologicamente, remete a Luis XIV). A orientação na partitura indica que o regente orienta e interfere “para um melhor resultado do conjunto sobre a livre improvisação coletiva (soma de interferências individuais)”. É relevante ainda que no decurso da peça as seções são cada vez mais extensas conforme a densidade do desenvolvimento do material (em analogia com a maior densidade do signo gráfico) em paralelo à ideia de amadurecimento no decorrer da vida – mas essa seção, indeterminada, deve durar no máximo dez segundos, de modo a não comprometer a organicidade formal da peça.
A seção final corresponde à palavra LIFE, como no logotipo da revista americana, sem serifas. Significaria a “via pragmática da vida”, e consiste inteiramente da citação do hino protestante Glória, glória, Aleluia em dó maior, “respeitada sua paupérrima harmonização (como está apresentado, no hinário das igrejas protestantes)”. Pode ser lida como a representação da morte na peça: um símbolo do capital, em oposição extrema com a riqueza de conteúdo do fragmento de Gesualdo no início.
A audição do hino ao final, em sua simplicidade explícita logo após o trecho mais indeterminado, pode induzir à percepção de uma paródia – o choque entre os dois caminhos mais opostos, assim brusco, pode levar a um reflexo humorístico. Na apreciação do conjunto, e na associação com o poema, é que surge associado à revista, como símbolo para a política cultural norte-americana, para uma doutrinação pobre como é pobre a harmonização do hino, a serviço do imperialismo, em plena Guerra Fria. O tratamento do hino nesse caso, exposto sem reelaboração harmônica nem variação do perfil polifônico – ou da escrita coral – representa a banalidade ao lado da música de vanguarda, apontada pela improvisação anterior; profissão de fé característica da época em que a peça foi composta. Um afastamento crítico desse universo décadas depois, aliado à reavaliação metalinguística do repertório, permitiria a inúmeros compositores se referirem a materiais pobres como esse em novos contextos – e é nessa recontextualização que a sintaxe pode levar a uma ressignificação desses materiais, em que sua aparente pobreza original (sob o ponto de vista da complexidade estrutural pura e simples) seja colocada em questão. Cerca de 20 anos depois da composição de LIFE: madrigal o próprio Willy trabalharia o coral protestante em novas soluções pianísticas e harmônicas (e formais, com eventuais colagens) em Velhos hinos cantados de novo, ciclo de 12 peças para piano de 1991.
Uma outra relação direta entre o universo do madrigal renascentista evocado com Gesualdo e a peça Life: madrigal está nas referências amorosas e eróticas durante a peça (em que beiram a obscenidade), abundantes (das formas indiretas e codificadas às mais diretas) em todo o repertório coral profano do século XVI. Outras obras de Willy, como Noturno em torno de uma deusa nua (2002) e Em teu crespo jardim (em duas versões, de 2001 e 2004), se relacionam até mais diretamente com essa temática, sem a referência ao repertório madrigalesco – nessa última peça, sobre poema de Carlos Drummond de Andrade (em versões sucessivas para voz solo e para voz e objetos executados por percussionista), a delicada sugestão erótica no texto é expandida pela cantora, que já nos últimos versos transita gradualmente para uma série de gemidos, suspiros e gritos contidos, até a representação de um orgasmo ao final. Em Life: madrigal essas ocorrências fazem parte, ainda, do projeto isomórfico com o poema de Pignatari, como uma parte da representação da vida – em estreita identidade com a obra de James Joyce. Sobre as tão discutidas referências sexuais no Ulysses de Joyce, é capital o comentário de Stuart Gilbert, que conclui sintomaticamente com a palavra que dá vida ao poema de Pignatari e à peça de Willy:
Na prática, percebemos que, da Bíblia em diante, quase toda grande obra que trata do universo como um todo e descobre uma coerência em todas as obras de Deus tem que incluir alguma obscenidade em sua apresentação dos fenômenos da vida.
(Gilbert, 1952, p.21).
Da longa e multifacetada trajetória de uma frase de oito compassos
O refrão protestante citado ao final da peça de Willy é, em si, um forte exemplo da multiplicidade de significados a que o discurso musical puro e simples pode ser associado – e às funções mais opostas que ele pode vir a exercer em decorrência dessas associações.
A versão mais difundida no Brasil (e àquela a que Willy se refere diretamente) é a presente tanto em hinários católicos quanto protestantes, com diversas letras, originária da tradução da canção norte-americana Battle Hymn of the Republic, cujo texto foi criado pela escritora Julia Ward Howe em 1861. A associação entre a simbologia protestante e a causa da União (dos estados do Norte) na Guerra Civil permearia de tal forma a fundação do estado após a guerra que a melodia, como parte de uma canção patriótica, foi adotada por igrejas cristãs as mais opostas entre si – e consequentemente difundida (apenas aparentemente sem o caráter patriótico americano) nos hinários de igrejas de diversos países.
Mine eyes have seen the glory of the coming of the Lord / He is trampling out the vintage where the grapes of wrath are stored / He hath loosed the fateful lightning of His terrible swift sword / His truth is marching on.
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / His truth is marching on.
I have seen Him in the watch-fires of a hundred circling camps / They have builded Him an altar in the evening dews and damps / I can read His righteous sentence by the dim and flaring lamps / His day is marching on. Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / His day is marching on.
I have read a fiery gospel writ in burnished rows of steel / “As ye deal with my contemners, so with you my grace shall deal / Let the Hero, born of woman, crush the serpent with his heel / Since God is marching on.” Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Since God is marching on.
He has sounded forth the trumpet that shall never call retreat / He is sifting out the hearts of men before His judgment-seat / Oh, be swift, my soul, to answer Him! be jubilant, my feet! / Our God is marching on.
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Our God is marching on.
In the beauty of the lilies Christ was born across the sea / With a glory in His bosom that transfigures you and me / As He died to make men holy, let us die to make men free / While God is marching on.
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / While God is marching on.
He is coming like the glory of the morning on the wave / He is Wisdom to the mighty, He is Succour to the brave / So the world shall be His footstool, and the soul of Time His slave / Our God is marching on.
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Our God is marching on.
Na origem desta melodia (que em suas mais diversas utilizações se manteve intacta, apenas com eventuais – e pequenas – alterações rítmicas para o encaixe do novo texto), por mais difícil que seja traçá-la, encontra-se o registro de um hino metodista (publicado por William Steffe em uma coletânea, em 1856) com um texto bastante mais simples e repetitivo, sem o caráter patriótico e as analogias militares do texto de Howe.
Say, brothers, will you meet us / Say, brothers, will you meet us / Say, brothers, will you meet us / On Canaan’s happy shore.
Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / For ever, evermore!
By the grace of God we’ll meet you / By the grace of God we’ll meet you / By the grace of God we’ll meet you / Where parting is no more.
Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / For ever, evermore!
Jesus lives and reigns forever / Jesus lives and reigns forever / Jesus lives and reigns forever / On Canaan’s happy shore.
Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / For ever, evermore!
Não foi esse hino, contudo, que de suas utilizações religiosas chegou ao ouvido de Howe, mas uma reutilização de sua melodia na forma da canção popular John Brown’s Body. John Brown (1800-1859) foi enforcado após o empreendimento da luta armada em prol da abolição da escravatura. Diversas versões com textos diferentes circularam em torno desse tema (infere-se inclusive que sua origem não corresponda ao personagem histórico mas a um homônimo), mas sua intensa difusão na época da Guerra Civil se deu em função da força do exemplo do ativista, que se constituiu em um dos motivadores mais diretos da Guerra Civil iniciada pouco tempo depois.
John Brown’s body lies a-mouldering in the grave / John Brown’s body lies a-mouldering in the grave / John Brown’s body lies a-mouldering in the grave / His soul’s marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
He’s gone to be a soldier in the army of the Lord! / He’s gone to be a soldier in the army of the Lord! / He’s gone to be a soldier in the army of the Lord! / His soul’s marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
John Brown’s knapsack is strapped upon his back! / John Brown’s knapsack is strapped upon his back! / John Brown’s knapsack is strapped upon his back! / His soul’s marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
His pet lambs will meet him on the way;
His pet lambs will meet him on the way; / His pet lambs will meet him on the way; / They go marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
They will hang Jeff Davis to a sour apple tree! / They will hang Jeff Davis to a sour apple tree! / They will hang Jeff Davis to a sour apple tree! / As they march along!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
Now, three rousing cheers for the Union; / Now, three rousing cheers for the Union; / Now, three rousing cheers for the Union; / As we are marching on!
Se essa versão não exclui nem o refrão do hino metodista nem a associação entre a luta política e a simbologia religiosa, o caráter da canção – em sua versão a mais inicialmente difundida – é muito mais claramente ligado ao de uma canção de luta, e mesmo ao ritmo de marcha, de que à exaltação religiosa. Esse caráter parece ter sido propício para uma nova utilização da mesma melodia que se tornou talvez tão difundida quanto o Battle Hymn: em 1915 Ralph Chaplin escreve os versos de Solidarity Forever para a central sindical Industrial Workers of the World (fundada em Chicago em 1905), e desde então ela vem sendo cantada como uma das mais recorrentes canções não apenas no movimento sindical no mundo todo mas em formas as mais diversas de luta e protesto contra o capitalismo – apenas como exemplo recente, ela ressoou continuamente durante os levantes de Wisconsin no início de 2011, enquanto os trabalhadores ocupavam o capitólio da capital, Madison.
When the union’s inspiration through the workers’ blood shall run / There can be no power greater anywhere beneath the sun / Yet what force on earth is weaker than the feeble strength of one / But the union makes us strong.
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity forever / For the union makes us strong.
Is there aught we hold in common with the greedy parasite / Who would lash us into serfdom and would crush us with his might? / Is there anything left to us but to organize and fight? / For the union makes us strong.
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity forever / For the union makes us strong.
It is we who plowed the prairies; built the cities where they trade / Dug the mines and built the workshops, endless miles of railroad laid / Now we stand outcast and starving midst the wonders we have made / But the union makes us strong.
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity forever / For the union makes us strong.
All the world that’s owned by idle drones is ours and ours alone / We have laid the wide foundations; built it skyward stone by stone / It is ours, not to slave in, but to master and to own / While the union makes us strong.
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity forever / For the union makes us strong.
They have taken untold millions that they never toiled to earn / But without our brain and muscle not a single wheel can turn / We can break their haughty power, gain our freedom when we learn / That the union makes us strong.
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity forever / For the union makes us strong.
In our hands is placed a power greater than their hoarded gold / Greater than the might of armies, magnified a thousand-fold / We can bring to birth a new world from the ashes of the old / For the union makes us strong.
Foi provavelmente sua difusão em meio ao movimento operário que fez que com essa melodia se tornasse bastante comum em associação a equipes de futebol inglesas, até que ela se tornasse um refrão do Manchester United Football Club. Longe tanto da exaltação religiosa quanto do ativismo político, nessa forma a melodia pôde ser associada desde à violência dos hooligans na década de 1980 até aos recentes negócios milionários do esporte – ressoava cantada por dezenas de milhares de pessoas, televisionada para todo o planeta, a mesma melodia, no jogo contra a equipe equatoriana LDU, na partida final do Campeonato Mundial de Clubes em 2008.
Glory, glory, Man United / Glory, glory, Man United / Glory, glory, Man United / And the reds go marching on, on, on …
Considerações finais
Que a melodia seja notoriamente vulgar ou estruturalmente simplória, isso nada depõe contra o argumento, mas em favor da clareza de sua enunciação. Depõe contra, sim, a capacidade crítica de um observador que cobre de todo e qualquer extrato da linguagem musical em sua história um critério único de avaliação deduzido da música erudita mais especulativa. “Pergunta a cada idéia: serves a quem?”, diria Brecht – a função que se lhes foi associada, cada uma das versões da canção elencadas nesse texto cumpriu da forma a mais efetiva, como atesta sua difusão e repercussão informal por todo o planeta em quase dois séculos.
Através de todas essas recirculações da melodia original, a pertinência não estaria necessariamente em comparar a associação direta deste ou aquele traço melódico com cada palavra do novo verso. O estudo da gama de significados que se abre em cada um desses casos se concentra na avaliação do verso e não da música. Em um segundo plano, mais claras as associações possíveis de serem estabelecidas com o texto, pode-se então inferir sobre a relação entre o significado sugerido e o trecho musical correspondente, quer seja ela de reforço de um significado específico, de contradição deste, ou ainda da sugestão de uma segunda associação, complementar, por exemplo.
Não é na estrutura musical que residiria um engajamento ideológico específico. Bem entendido que a operação sobre o material, a dedicação à criação artística em geral, podem se constituir em ação política, no sentido mais amplo do termo. Mas nenhum engajamento político preciso em prol de qualquer causa específica pode ser advogado pela manipulação do discurso musical puro e simples, sem nenhuma associação extra-musical que o acompanhe.
Parafraseando tautologicamente um grande artista: em música, não há forma revolucionária sem forma revolucionária. Mas essa já é uma outra discussão.
Referências
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CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos (1950-1960). São Paulo: Duas Cidades, 1975.
DE BONIS, Mauricio Funcia. O Miserere de Willy Corrêa de Oliveira: “aporia” e “apodíctica”. São Paulo: Annablume, 2010.
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GILBERT, Stuart. James Joyce’s Ulysses: a study. New York: Vitage, 1952.
JOYCE, James. Finnegans wake / Finnicius revém. Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: Ateliê, 2002 (5 volumes).
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______. Willy Corrêa de Oliveira, o presente. CD de áudio. São Paulo: Água-Forte / Petrobrás, 2006.
Notas
[i] O termo comprime as raízes latinas para a “palavra”, sua enunciação sonora, sua decodificação visual. “Up to this curkscraw bind an admirable verbivocovisual presentment of the world renowned Caerholme Event has been being given by The Irish Race and World”. Na tradução de Donaldo Schüler: “Até a curva da saca-rolha um admirável presentamento verbivocovisual do mundialmente famoso Evento de Caerholme estava sendo dado pela The Irish Race and World” (Joyce, 2002, p.300-301). No comentário do tradutor, trata-se da “irradiação de uma corrida de cavalos que evoca experiências literárias desde a primeira linha. O presentamento verbivocovisual reconcilia visão e audição, sentidos que, como os filhos de Abraão, disputam a primasia. Presente está a substância verbal, ausentes estão os referentes” (idem, p.393).
[ii] Tivemos a oportunidade de comparar com mais detalhe esses dois manifestos em De Bonis (2010a).
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