O bom, o mal e o feio

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Cinco razões para ser pessimista em relação ao mundo da arte
Este texto propõe cincos razões que explicam porque o mundo da arte é uma bagunça desesperadora. Elas são seguidas de cinco respostas. O texto é uma charada. Não leia a conclusão antes de ter lido todo o resto.

1.a. Os Estudos Visuais estagnaram.
O campo, que emergiu no começo dos anos 1990, tinha grande potencial: ele prometia ser o lugar onde se poderia estudar imagens de todos os tipos, para além da esfera das belas artes. O campo da história da arte, tido como moribundo, deveria ser criticado e um novo espaço interdisciplinar se abriria, um espaço entre história da arte, antropologia, film studies, midialogia, crítica literária, filosofia, antropologia e perfomance. O campo dos Estudos Visuais deveria ser transdisciplinar, não disciplinar, subdisciplinar. Devia ser o lugar onde televisão, filme, vídeo, propaganda e fotografia poderiam ser analisados juntos; onde Erwin Panofsky, George Kubler, Meyer Schapiro e Ernst Gombrich dariam lugar a Walter Benjamin, Jacques Lacan, Michel Foucault e Roland Barthes. Os Estudos Visuais proveriam crítica política séria, uma análise do operador, um interesse renovado sobre o olhar, um repensar da teoria pós-colonial, um escopo genuinamente internacional, um alcance para além do mundo da arte, e para além dos estreitos caminhos das Humanidades. Mas essa promessa foi dissipada, e o campo permanece apenas uma colagem de estudos em interesses específicos, falhando em organizar um projeto mais amplo coerente que se estenda para fora dos limites familiares das belas artes e das mídias de massa.

2.a. A arte política está perdida.
Com o declínio da crítica institucional coordenada no final dos anos 1990, artistas de engajamento político genuíno se voltaram para a estética relacional e outras estratégias de intervenção não nomeadas. Alguns dos projetos mais interessantes e radicais de arte política usam o termo “arte” em um sentido não definido: seus praticantes não têm um modelo do que “arte” significa no contexto de sua prática, exceto como realizadores de um trabalho feito à margem das instituições e ideologias criticadas; ou como uma incógnita para o que em sua prática não pode ser atribuído à estética. Alguns projetos em andamento chegam a evitar a palavra “arte” completamente, clamando o questionamento de seu próprio lugar político e adiando a questão do que “arte”, em última instância, deveria ser. Ao mesmo tempo, feiras de arte internacionais e exposições tornaram-se escrupulosamente tolerantes para com a arte política, além de impecavelmente agnósticas no que se refere à força, verdade ou necessidade que tal arte possa ter. Como resultado, quase toda prática política pode encontrar um lugar no mundo da arte internacional, onde é rapidamente aceita, assimilada e despojada de qualquer poder notável. Ainda não há nenhuma teorização sobre porque as artes visuais deveriam ser um veículo privilegiado para a ação política.

3.a. O mercado de arte não foi interpretado.
O mundo da arte produz uma avalanche de literatura. Nenhuma pessoa na escola de arte onde eu ensino lê sequer uma fração dos 208 periódicos sobre arte que assinamos. Ninguém lê mais que uma pequena fração dos blogs e websites que anunciam arte nova. Ninguém lê mais do que alguns livros sobre história da arte e estética das centenas que aparecem a cada ano. Até onde posso dizer, ninguém se dispõe seriamente a ler as inúmeras brochuras e catálogos que as galerias produzem em escala desconcertante. Alguns dos mercados mais representativos, como o da arte chinesa, existem na quase total abstinência de qualquer literatura interpretativa. Crítica e teoria sérias existem de fato, mas elas são quase inaudíveis, perdidas na desordem do segundo plano. Apenas alguns artistas principais, como Andy Warhol e Gerhard Richter atraíram interpretes bons e suficientes para que as posições principais em seus trabalhos pudessem ser discriminadas e discutidas. Para a maioria, a literatura é esparsa, não lida e na maioria dos casos repetitiva. Artistas são entrevistados incessantemente, as questões são fáceis ou previsíveis, e artistas conhecidos ouvem as mesmas perguntas de novo e de novo. A soma total de escritos sobre um artista médio é uma coleção deprimente de recortes de jornal e artigos comissionados. Essa situação não parece incomodar a ninguém, talvez porque qualquer aparência de senso comum ou argumento coordenado poderiam ser vistos como posições conservadoras ou reacionárias.

4.a. O mundo da arte é incoerente.
O mundo da arte por vezes descreve a si mesmo como um ser em estado de pluralismo. Dizem que o advento do pós-modernismo nos anos 1960 produziu as condições nas quais qualquer número de estilos e tipos poderiam ser praticados simultaneamente, de modo que as teorias sobre arte se tornassem inumeráveis, cada qual uma equivalente filosófica de qualquer outra. (É um interessante paradoxo que a pessoa associada a essa doutrina, Arthur C. Danto, se expresse em prosa claríssima, solidamente fundamentada.) Porém, o mundo da arte é mais incoerente que pluralista. Temas específicos da arte como fotografia, a representação de paisagens e temas religiosos em arte e globalismo são marcados por diferenças e mal-entendidos que não podem ser caracterizados como pluralistas. No campo da fotografia, por exemplo, algumas pessoas se recusam a discutir sobre a noção de índice, ou sobre o punctum de Roland Barthes, e isso por si só poderia ser um efeito normal, decorrente de uma pluralidade de interesses. Mas pelo menos uma parte dessas pessoas não têm nenhuma posição em relação a esses assuntos, além de não terem nenhuma explicação razoável sobre porque seria irrelevante o fato de elas não terem uma posição. O campo da crítica fotográfica é mais do que uma simples pluralidade de pontos de vista: é um campo heterogêneo, sem qualquer esperança razoável do desenvolvimento de uma discussão coerente.

5.a. A crítica de arte é impotente.
A grande organização internacional AICA, principal sociedade de crítica de arte do mundo, está intelectualmente falida. Muitos de seus membros se associam somente para ter o cartão de identidade que permite entrada gratuita em museus ao redor do mundo. A AICA promove um prêmio anual para o melhor trabalho de curadoria, ainda que seja uma organização voltada para críticos de arte, e, portanto, deveria estar oferecendo um prêmio para a crítica. (No Reino Unido eles de fato têm o Bernard Denvir AICA Memorial Award for Art Critics, e ofereceram prêmios especiais para contribuições notáveis em crítica de arte, mas seu prêmio mais importante vai para a curadoria.) Ao oferecer um prêmio para a melhor exposição, a AICA evita ter de discutir abertamente o que a crítica de arte de ponta deveria ser. A crítica de arte se encontra em grande desordem: não existem mais fóruns sobre termos críticos, conceitos principais ou questões éticas. Não há discussão sobre se os críticos de arte deveriam julgar (como gerações anteriores pensavam) ou considerar as condições para o julgamento (como o grupo em torno de Rosalind Krauss propôs nos anos 1970) – e ainda assim formar juízo tem sido, historicamente, condição sine qua non para a crítica. Alguns dos críticos mais lidos tem prazer de declarar que não têm ideias norteadoras, nenhuma teoria ou perspectiva. Ninguém sabe se a crítica de arte tem uma história: será que Charles Baudelaire conta como um precursor da crítica de arte contemporânea? Não se julgarmos pelo modo como as pessoas escrevem, porque ninguém emula Baudelaire. Mas sem modelos históricos, sem uma história, a crítica de arte se torna uma forma de escrita como qualquer outra. Seria difícil encontrar outro campo do conhecimento tão completamente privado de autodefinição quanto a crítica de arte.

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1.b. Os Estudos Visuais estão triunfantes.
Os estudos visuais estão se espalhando ao redor do mundo, com novos programas abrindo na América Central e do Sul, no sudeste da Ásia, na Europa Oriental e África do Sul. Há evidência, a partir do número de alunos matriculados, que os estudos visuais estão superando a história da arte, e é possível que os estudos visuais venham a absorver e transformar a história da arte nas décadas por vir. A ênfase dos estudos visuais em ação e visualidade, em oposição a objetos visuais, é uma releitura transformadora da história da arte. É inegavelmente trans-disciplinar e, caso não seja coesa, isso é simplesmente apenas um indício de sua força. Os estudos visuais estão abertos para estudos sobre filmes e a mídia, antropologia visual, sociologia, economia e outras áreas; e tem a capacidade de se tornar uma força aglutinadora na vida universitária, aproximando pessoas de várias disciplinas com um interesse geral em visualidade. A diversidade de periódicos voltados para os estudos visuais – da Journal of Visual Studies à Critical Inquiry – evidenciam a força do tema. Seria difícil apontar um campo nas humanidades que esteja crescendo mais rapidamente ou gerando mais interesse.

2.b. A arte política é central para as belas artes.
Dada a enorme influência dos mercados mundiais de arte (as muitas feiras de arte repletas de arte regida pelo mercado, meramente decorativa, exótica, neoconservadora ou ainda tardia e sem apelo),  e dado o número igualmente grande de graduandos em arte (cujos trabalhos podem ser homogêneos e previsíveis em seu mimetismo camaleônico das últimas tendências), e dado o crescimento exponencial dos mercados de arte nacionais na China, Brasil e Índia (onde a produção, divulgação e interpretação de arte mimetiza e expressa o triunfo do capitalismo e a prosperidade) – dado tudo isso, a arte política é mais importante do que nunca. As iniciativas mais interessantes – como o Critical Art Ensemble, Institute for Applied Autonomy, The Yes Men, Conglomco Media Network, Finishing School, Temporary Services e irational.org –  estão encontrando meios criativos de abalar o espetáculo de consumismo sem fim que agora move boa parte da produção cultural ao redor do globo. Mesmo a arte não abertamente política é extravagante e exótica de maneiras que seriam impossíveis apenas dez anos atrás. Sua exuberância reflete o crescimento selvagem do capitalismo tardio.

3.b. O mercado de arte é pleno de significado.
Não é verdade que o mercado de arte não foi interpretado. Os mercados de arte norte americano e europeu são tão profundamente interpretados que é impossível se manter em dia com a literatura – e isso é uma coisa boa. Mesmo a arte contemporânea chinesa, que aparentemente tem crescido na relativa ausência de discussão crítica, está de fato criando uma geração inteira de historiadores, curadores, colecionadores e críticos chineses que são geralmente ignorados no ocidente, tais como Zhang Zhiyang, Pi Li, Wang Huangsheng, Johnson Zhang, Li Xianting, Gao Ming Lu, Qing Huang, Peng De, Wang Nanming, Shui Tian Zhong, Wang Lin Tao Yongbai, Wang Jianwei, Yin Jinan, Zhang Rui, Xu Manray e Hou Hanru. Dizer que o mundo da arte internacional não foi interpretado é um sinal claro da parcialidade ocidental, das certezas e do prescritivismo arrogante daquilo que Dipesh Chakrabarty chama de “Europa”. O mundo da arte está cheio até a borda com interpretações. Há mais teoria séria sendo produzida agora do que jamais houve, e esta teoria vai do pós-estruturalismo francês (Alain Badiou, Jean-Louis Scheffer, Jacques Rancière, Marie-José Mondzain, Jean-Luc Nancy) à neuroestética e à ciência cognitiva (John Onians, Ladislav Kesner, Barbara Stafford). Quem poderia querer mais interpretação?

4.b. O mundo da arte é incoerente; mas tudo bem.
O que significa “incoerente”, e por que isso é tão ruim? Talvez isso signifique que o mundo da arte é pluralista, ou relativista, ou ambos. Se você procurar “pluralismo” na Wikipédia vai encontrar pluralismo político, pluralismo material, pluralismo metodológico e uma dúzia de outros. No mundo da arte, pluralismo significa que existem práticas que envolvem conceitos que são desproporcionais em relação a outros. Mas e daí? O mundo da arte também é relativista, o que significa que não há um único ponto de vista que seja independente de outros, de modo que cada interpretação depende de outro ponto de vista. Mas isso parece banal, e mesmo necessário, para qualquer empreendimento cultural. Logo, se o mundo da arte é incoerente, isso apenas quer dizer que ele é saudável. Por exemplo, poucas pessoas têm teorias completamente elaboradas sobre o que é a fotografia (Rosalind Krauss, Joel Snyder, Thierry de Duve, Liz Wells, Geoffrey Batchen, Jan Baetens, Carol Squiers, Anne McCauley, talvez uma dúzia de outras). A maior parte das pessoas têm ideias mais ou menos iniciais sobre o que faz fotografias serem diferente de outros meios, e está tudo bem. Também não tem problema se suas ideias não se misturam umas com as outras, ou se elas falam línguas diferentes, ou se elas não têm ideia alguma. Isso é arte.

5.b. A crítica de arte está ótima.
A crítica de arte é exatamente, precisamente, o que deve ser neste preciso momento. Ela abandonou seus princípios, que não passavam de camisas-de-força modernistas ou bravatas ideológicas, e se tornou tão flexível quanto exige o campo da arte. Faz sentido que críticos como Jerry Saltz e Dave Hickey sejam tão populares entre jovens artistas da América do Norte: a postura antiteórica de Saltz e o antiinstitucionalista de Hickey estão afinadíssimos com o mercado de hoje. Danto é popular, em parte, porque é uma influência libertadora: sua doutrina parece exortar por um fim da história da arte, com seu interesse obsessivo em linhas de influência e a crescente importância do passado. A crítica não seria crítica se ela tivesse uma história de estilo acadêmico ou princípios de estilo acadêmico. A crítica funciona por meio do juízo: é o momento do encontro subjetivo, o momento no qual a obra de arte se apresenta pela primeira vez. Se esse momento fosse constrangido por alguma exigência intelectual, ele não teria mais o grau de abertura de uma experiência fenomenológica genuína. Ele não seria selvagem: seria domesticado. Seria história da arte.

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Conclusão

Estes tópicos expressam dois estados de espírito. O primeiro grupo de cinco tópicos é pessimista e cético. Já o segundo grupo de cinco é otimista e esperançoso. Coloquei os tópicos pessimistas antes dos otimistas para que este ensaio terminasse com um tom positivo, e também para criar um desafio. Acredito que se você ler o texto do começo até o fim terá a impressão de que os argumentos otimistas respondem aos argumentos pessimistas, mas na verdade eles não o fazem. Os argumentos pessimistas é que respondem aos argumentos otimistas, e de fato os argumentos otimistas estão dispostos de modo a serem más interpretações dos argumentos pessimistas.

O mundo da arte é uma bagunça produtiva, e está tudo bem se você não está interessado em dizer o que a arte significa. Uma vez que você começa a considerar o significado histórico, filosófico e crítico do trabalho, então o mundo da arte se vê numa confusão desesperadora, tornada ainda mais desesperadora pelo otimismo alienante criado pelos mercados e pelo dinheiro. É importante frisar que não estou clamando por um retorno aos princípios, argumentos, racionalidade, intervenção política efetiva ou coisa do tipo. Estou apenas apontando motivos pelos quais não faz sentido ser otimista quanto às liberdades, possibilidades, valores de mercado, posição histórica, expansão, significado ou direção da arte atual, história da arte, estudos visuais, crítica de arte ou teoria de arte.


Texto originalmente publicado na revista Frieze nº 118, Outubro de 2008. Disponível também online em <https://frieze.com/article/good-bad-and-ugly-1>. Traduzido por Roberto Winter.

 


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