Nota: este ensaio foi escrito em forma de anotações em 2010, por ocasião da 29ª Bienal: as partes do texto em negrito + itálico são sempre citações do texto curatorial; somente em itálico são citações das etiquetas referentes a obras individuais.
HÁ SEMPRE UM COPO DE MAR PARA UM HOMEM NAVEGAR:
A 29ª Bienal de São Paulo está ancorada na ideia de que é impossível separar arte e política. Impossibilidade que se expressa no fato de a arte, por meios que lhes são próprios, ser capaz de interromper as coordenadas sensoriais com que entendemos e habitamos o mundo, inserindo nele temas e atitudes que ali não cabiam ainda, tornando-o assim maior e diferente.
Uma visita a Bienal durante a semana – e isso tem sempre sido assim – confirma o “momento de desconcerto dos sentidos e, ao mesmo tempo, de geração de conhecimento que não se encontra em mais parte alguma” (do parágrafo “Do tempo e do lugar” do mesmo texto).
As centenas de milhares de escolares que visitam bi-enalmente o mega-evento fazem algazarra – e com razão; e muita correria. O desconcerto dos sentidos ocorre justamente aí, mas não por meio do puramente sensorial: mais pela questão do sentido de expor essas crianças perante uma sucessão de obras que são criadas dentro de um sistema altamente codificado que pouco ou nada se aproxima minimamente dos códigos e referências com as quais elas interagem com o mundo. Dada a péssima qualidade do ensino público hoje no Brasil – um estudo do Banco Mundial publicado em 2008 conclui que “infelizmente, numa era de competição global, o estado atual da educação no Brasil significa que o país vai ficar atrás de outras economias em desenvolvimento na busca de novos investimentos e oportunidades de crescimento”; no teste de leitura do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, “brasileiros de 15 anos ficaram no 49º lugar entre 56 países; em matemática e ciências o resultado foi pior” – me parece de fato desconcertante a prática desse ritual. E não se deve duvidar da boa intenção do programa educativo da Bienal, e certamente a criançada prefere passar um dia fora da escola, onde quer que seja – mas não se deve duvidar também que se pudessem escolher, creio que prefeririam ir ao Playcenter ou algum shopping. O número de obras que oferecem alguma forma de entretenimento no estilo ‘aventura’ ou ‘espetáculo sensorial’ para o não-iniciado é bastante reduzido; sobram as rampas dentro do pavilhão ou a do MAC que, ao menos na descida, são sempre um “high-light”.
Em outros tempos as escolas levavam seus alunos para assistir às paradas militares nos 7 de setembro ou 9 de julho; querendo ou não, algumas dessas crianças prestaram mais tarde o serviço militar, e entre elas possivelmente algumas prosseguiram com uma carreira nas forças armadas.
Se a visita à Bienal pode fazer alguma diferença, considero duvidoso que ela possa “desconcertar os sentidos e gerar conhecimentos que não se encontram em mais parte alguma” – e isso sem malícia. Conhecimento e cultura são cumulativos, e entre ler e escrever razoavelmente bem e se conseguir fazer algum sentido da recente produção internacional das artes visuais e da sua disposição ‘contextualizada’ é um salto bem maior do que a intenção educativa benigna seja realisticamente capaz de realizar. Pude observar o entusiasmo genuíno com que os educadores tentam instigar alguma forma de interesse e transmitir significado (supostamente contido nas obras); ainda assim, invariavelmente sou remetido a uma cena que presenciei na Capela Sistina muito tempo atrás, de uma mãe que, ao tentar despertar a criança de seu tédio, apontava para o teto dizendo: “olha só meu filho, é tudo feito à mão”.
Enquanto assisto ao vídeo “Tornado”, obra de Francis Allÿs, escuto um visitante adulto (V) se direcionar ao educador (E) que acompanha um grupo de crianças e perguntar:
V: Mas o que que tem a ver tornado com política?
E: O QUE QUE TEM A VER?
V: É, o que que tem a ver?… afinal tornado é uma força da natureza, não é feita pelo homem, não enxergo a relação etc…
E: Bom, isso pode ser uma metáfora para a força destrutiva que a política pode ser etc…
V: Sim, mas a política é feita pelo homem, enquanto o tornado é um fenômeno natural…
E: É, mas isso pode ser uma METÁFORA…
…e desde aí continuaram, sugados pelo turbilhão que ganhou rapidamente a força de um furacão, graças à capacidade do ser humano de facilmente viajar (navegar!) na maionese (um pote de maionese para o homem viajar? sob orientação da curadoria?)
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Abrigada no pavilhão modernista par excellence, projetado dentro do modelo programático do funcionalismo e transparência, a 29º tem a escala de um transatlântico “full-size”, com obras de 159 artistas (um transatlântico ancorado na idéia de que é impossível separar arte e política); por conta desse alto número é natural que o visitante sinta grandes desníveis: e apesar do transatlântico “ancorado” ter sido capitaneado (de mentirinha) para navegar “nesse ‘copo de mar’, nesse infinito próximo”, o “desconcerto dos sentidos” se dá obrigatoriamente por meio da capacidade limitada que o ser humano tem para absorver uma quantidade finita de informação num dado número de horas – a concentração declina rapidamente e o cansaço assume o papel de desconcerto. Obras interessantes acabam desaparecendo na espessa neblina que vai tomando conta da mente, o que torna difícil separar o joio do trigo, o legítimo do fajuto: levam vantagem os faroleiros que emitem seus fachos de luz com espalhafato, enquanto a importância de uma obra mais discreta como Ship of Fools de Allan Sekula pode passar desapercebida.
Seria de grande interesse uma estatística que revelasse, para além das cifras brutas do número total de visitantes, o número de pessoas que visitou a Bienal duas ou mais vezes. Enquanto em Kassel e Veneza a vasta maioria dos visitantes viaja de outras localidades para passar 2 ou 3 dias no intuito de abranger a extensão da Documenta ou da Bienalle (em Veneza navega-se com barquinhos), a grande maioria dos visitantes da Bienal de São Paulo é local.
“Isso faz com que a exposição tenha inflexões diferentes de outras mostras que sejam eventualmente organizadas a partir de princípio semelhante, mas desde uma posição de mundo distinta. Implica, além disso, conceber e organizar a mostra politicamente; ou seja, entendê-la como um aparato que retrata criticamente, por meio da produção artística e da organização desta no espaço expositivo, o mundo corrente”.
O francês que entra num Carrefour no Brasil e o brasileiro que entra num Carrefour na França vão invariavelmente notar as semelhanças nas disposições e estrutura geral do estabelecimento e, em seguida, o que os difere em termos de sortimento, determinado pelas razões econômicas, culturais e políticas que ditam a sua oferta ou demanda. Exemplos banais: a quantidade de Leite Moça e óleo para fritura presentes nas prateleiras brasileiras é uma caraterística nacional; o brasileiro na França obviamente vai se deparar com uma imensa variedade de queijos e muito mais espaço dedicado ao vinho do que à cerveja ou aos refrigerantes – isto é, são ambos Carrefours “desde uma posição de mundo distinta”. E na visita ao estabelecimento “instituição cultural”, em se tratando de repertório, não se espera outra coisa do que se encontrar diferentes ênfases se o Museu de Arte Moderna visitado for o de São Paulo, Paris, Nova York ou Teerã. É natural que seja assim.
Mas na impossibilidade de se separar arte e política, é impossível, da mesma forma, de se separar política de politicagem. E obrigatoriamente posicionar esse “aparato que retrata criticamente, por meio da produção artística e da organização desta no espaço expositivo, o mundo corrente” num platô imaginário, localizado no topo de alguma montanha mágica, num Neverland, num estágio civilizatório “premium”, desde onde se possa enxergar o mundo e suas mazelas, me parece obsoleto, naïf e equivocado, se não uma questão de má fé – é uma questão de crença como a que está contida no discurso das religiões organizadas, uma vez que implica a priori essa condição como imprescindível e impreterível. É tratar os atuantes como seres em posse de misteriosos radares, antenas e night-vision goggles que os permitem enxergar as coisas de forma que os cidadãos comuns não são capazes: está tudo certo, mas é uma grande omissão, ou caiação, não deixar implícito que o “aparato” é povoado também por egos inflados, cifras mirabolantes, pressões, vaidades, equívocos, interesses e tudo aquilo que faz parte de sistemas que suportem qualquer tipo de conglomerado, seja ele religioso, esportivo, político, comercial, criminoso ou cultural.
E enquanto alguns desses “aparatos” são permeáveis o suficiente para permitir transparência, escrutínio e autocrítica, aqui nos deparamos com um que se autoentitula crítico, mas onde certos “aparatchiks” transitam com vestimenta clerical, ornamentada com estampas e bordados de design projetado por software programado com o jargão de “cunho intelectual”, a língua-franca do “aparato” que quer transmitir a mensagem de estar ética e moralmente acima de qualquer suspeita.
“Do tempo e do lugar”
A década de 1950 em São Paulo presenciou a aparição da Bienal, e pouco tempo depois também do super-mercado self-service (o Sirvase sendo o primeiro, seguido pelos Pão de Açúcar, Peg-Pag, Sé e outros – todos, um por um, posteriormente tendo sido engolidos pelo Pão de Açúcar). As lojas de departamento como Mappin, Mesbla e Sears – os chamados “grandes magazines”, hoje em dia tão extintos quanto os dinossauros – aos poucos deram vez a uma mutação na forma dos hipermercados e aos “lojões”, e a partir de meados dos anos 60 apareceu o primeiro shopping center, o Iguatemi, localizado na Rua Iguatemi, antes de ser alargada e rebatizada de Av. Brigadeiro Faria Lima. Esse shopping não era originalmente o “templo de consumo” dos artigos de marcas “hiperssofisticadas” com as quais é identificado hoje em dia; tudo era mais pé-no-chão e a ‘praça de alimentação’ se reduzia basicamente às muito populares batatas fritas vendidas em um carrinho na porta das Lojas Americanas; mas havia um pouco de tudo, lojas, serviços e cinemas – era o transplante da invenção do arquiteto austroamericano Victor Gruen, o ‘shopping mall’, criado especificamente para os ‘suburbs’ que surgiram nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra, que não continham um centro orgânico de lojas e serviços (ele posteriormente rechaçou sua criação).
Os shoppings brasileiros foram implantados dentro da cidade. E proliferaram: existem por toda parte e simbolizam na percepção geral uma forma mais ‘avançada’ de se praticar o consumo, se comparada ao comércio de rua (a 25 de Março sendo um exemplo bastante óbvio do ‘primitivo’ – e a Oscar Freire uma exceção que confirma a regra). Há uma hierarquia entre os shoppings no que se refere ao grau de ‘premiumness’ – que se pode traduzir como ‘exclusivismo’ no sentido literal da palavra, uma vez que a vasta maioria da população está excluída de consumir um par de meias que seja em shoppings como o Iguatemi ou Cidade Jardim – da muito pomposa Daslu nem se fala. Notoriamente o prestígio de um shopping está ligado à presença ou não de certas marcas (as “âncoras”, no jargão do universo imobiliário do shopping) que conferem a esse algo equivalente a um título de nobreza, um carimbo de legitimação de estar conectado ao alto patamar do estágio civilizatório “premium”, do qual todas as outras lojas, as mais reles também, algum lucro possam tirar.
Esse avanço coincide com retorno do neopomposo, especialmente visível em São Paulo na arquitetura que se prolifera como mato e que virou as costas para o modernismo – na forma dos ‘templos do consumo’, ‘mansões suspensas’ com nomes palaciais, na proliferação das ‘mac-mansões’. Isso denota que as classes mais abastadas do presente têm uma inclinação para se sentir mais à vontade quando ambientadas em cenário com requisitos de iconografia que sugerem tradição que remonta ao passado longínquo, à história, não tendo importância alguma se é tudo postiço e artificial. Tampouco tem importância o fato de que o neopomposo tem origem nas duas formas extremas de totalitarismo que o século XX testemunhou, de um lado o fascismo e nazismo, de outro o Stalinismo – ambos também viraram as costas para o modernismo e buscaram a encenação pública da política por meio do espetáculo, da arte e da arquitetura pomposa (com a diferença que um deles ao menos tem origem em ideais humanistas, o outro não – na fachada e na eficiência para suprimir dissidência foram iguais).
Talvez a cultura de glamourização do banal que permeia nossa civilização – ‘nossa’ não somente no sentido nacional – seja a herança disso tudo. Ou seja, é nesse ‘plurarismo’, contraditório e confuso, num momento de quase euforia por conta dos índices econômicos e da expectativa do pré-sal, tornada palpável (e desconcertante) pelo número de carros novos que diariamente se inserem às vias de leito carroçável de São Paulo (1000 a mais em média) que a Bienal tenta se inserir, buscando revelar as superfícies que darão tração a sua empreitada: apontando para a impossibilidade de se separar arte e política, ao mesmo tempo que “é nesse ‘copo de mar’, nesse infinito próximo que os artistas teimam em produzir, que de fato está a potência de seguir adiante, a despeito de tudo o mais” – a despeito inclusive da pomposidade inscrita na fachada na forma do discurso que ela enuncia, com o fim de apresentar uma lógica interna que justifique e tente esclarecer o posicionamento tomado pela 29ª Bienal.
O texto curatorial sucede em sua lógica interna, tem começo, meio e fim, e quer criar a impressão que vai cumprir a promessa de “pôr seus visitantes em contato com a política da arte”, sem ser muito específico quanto ao que isso signifique.
Seria ele manifestação daquilo que na psicanálise e psicologia contemporâneas se define como “racionalização”? Seria a tentativa de se impor lógica e sentido em ações cujos mecanismos são outros daqueles que se possam abertamente deixar-se expostos, mesmo quando a “exposição em si” demonstre uma lógica que dificilmente corresponda à narrativa do texto?
Tem-se a impressão de que a questão ‘arte e política’, efervescente, é uma espécie de Sonrisal que se joga no tal do copo para que se dissolva com o propósito de se obter alívio de algum mal-estar.
No contexto da economia global existem algumas entidades (aparatos) que se mantém fora de quaisquer diretrizes que regulam as diversas formas de intercâmbio comercial: entre elas o narcotráfico, o tráfico de armamentos e o mercado de arte. Elas são comandadas por suas próprias regras (suas artes e suas políticas) e transparência não é o ponto forte de qualquer uma delas – mas enquanto a mão pesada que auto-regula o narcotráfico é aparente, no mundo das artes visuais (caso único na indústria do entretenimento) encontramos uma fachada decorada por um discurso com sotaque intelectualizado, uma língua rica em ambigüidades onde Adorno vira ornamento e Benjamin o “benjamim” (onde simultaneamente se plugam o computador, os carregadores do celular e da câmera de vídeo); ornamentar essa fachada se revela como um campo fértil para a prática de glamourização do banal.
“Do tempo e do espaço”
É preciso apontar para o fato de que maneirismos não são um fenômeno que se manifesta somente na criação artística, mas também pelo resto do areal onde o “aparato” reside. Em 2010 esse tipo de posicionamento crítico no universo cultural brasileiro está mais do que fora de questão: discutir as politicagens que também operam no “aparato” é algo tabuisado – e apontar, ainda que por pura especulação, para uma possível relação entre as profissões “curador” e “decorador” é o mesmo do que se embrenhar por mares traiçoeiros sem bússola nem colete salva-vidas, experiência muito diversa daquela de se embrenhar por esses mares que cabem num copo. Não se deve esquecer que a ruína do socialismo se deve em grande parte ao papel exercido pelos “aparatchiks”, da mesma forma que os “aparatchiks” da Wall Street recentemente levaram a economia mundial à beira do colapso.
Obras com visão crítica voltada “para dentro” do “aparato” são ausentes porque não são bem-vindas, não interessam; sobreviver dentro do “aparato” é um desafio difícil o suficiente, dada a instabilidade e volatibilidade de reputações que se formam tanto a duras penas como num passe de mágica, e que podem se dissolver sem deixar vestígios.
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Aos ouvidos dos ‘iniciados’ tudo soa mais ou menos familiar e legítimo. Já se ouviram certos termos tantas vezes que se tem a impressão que de alguma forma isso tudo faz sentido: lê‐se na entrada de uma das salas que “a retórica da ausência, do deslocamento e do reencontro é usada e explorada – a prática de Mario Garcia Torres repensa as estruturas que fazem e têm feito a arte existir do modo como a conhecemos”; mas será que repensa mesmo? (A sonata para piano nº 26 op.81a de Beethoven, composta em 1809, conhecida como “Les adieux”, tem 3 movimentos com os títulos “A despedida”, “A ausência” e “O reencontro”: seria Beethoven considerado “contemporâneo” se tivesse usado “deslocamento”ao invés de “despedida”?).
E se ao invés de “deslocamento”, “ausência” e “estruturas” tivéssemos “posto de gasolina, lanche, morte, Carol e arado”, interligados por verbos e partículas que fizessem do disparatado alguma impressão de sentido? É assim tão simples poder afirmar que a “arte do modo como a conhecemos” seja definível como uma entidade finita sem que o referencial dessa não passe de uma caricatura um tanto simplória? O que significa o tão abusado “deslocamento”? Comprar peras no Limão? a casa verde no Tatuapé? Ou ir até o Ó para se pôr os pingos nos is?
Utilizei deliberadamente do recurso da caricatura da “arte do modo como a conhecemos” quando em 2008 escrevi um ensaio sobre a 28ª, a tal da “do vazio”, que em detrimento de apresentar uma versão “full‐size” do evento, enfatizou a necessidade de se discutir o estado precário no qual a instituição se encontrava:
“mas quem garante que o resultado de tanto debate não seja uma 29ª que atulhe de novo o pavilhão até a borda com quadros, estátuas, televisores e instalações em geral?”
(http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/001959.html)
Na sua 29ª edição, os milhares de metros quadrados previstos para a mostra no pavilhão não foram suficientes para abrigá-la, e o ‘copo de mar’ ainda inunda uma área respeitável do MAC. E até o entorno (o “lá fora”) recebeu o tratamento pomposo que confere “premiumness” ao banal, por meio da aplicação e uso consistente do que se pode chamar kitsch intelectual, como o que se lê aqui abaixo:
“Dito, não dito, interdito” é um lugar destinado a funcionar como auditório ou praça ao ar livre (…). Tensionando a membrana que separa a Bienal de seu entorno, ela retoma e amplifica o conceito de terreiro, essa noção tão brasileira.
Publicado em: Dazibao 2