Declaração não solicitada ao Group Material

dazibao-2-08

Carta de circulação interna publicada originalmente no livro “Show & Tell: A Chronicle of Group Material” editado por Julie Ault (Four Corners Book, 2010).

22 de Julho de 1980
Uma proposta para aprender a desabafar: comportamento, disciplina e o nosso projeto.

Gostaria de ser muito franco. Fiquei muito magoado com a reunião da semana passada; a depressão decorrente foi exacerbada pelo que eu interpreto serem os sentimentos de outros membros de que eu pessoalmente fui responsável pelos problemas no grupo, que eu deveria falar com as pessoas, que eu deveria fazer algo quanto às relações tensas que afligiram este grupo com um caso grave de hipertensão. Isto é o que eu tenho a dizer, e eu acho que não é mais que justo e apropriado dirigir minha declaração ao Grupo como um todo:

Não quero ser excessivamente dramático, mas eu me preocupo – e às vezes fico horrorizado – por causa do Group Material. A quantidade colossal de tempo, energia, conversa e dinheiro que já foi canalizada neste Grupo por seus membros transformaria qualquer cagada interna na mais grave das tragédias. Para ser direto, esse Grupo TEM QUE ser um sucesso — um tipo de sucesso com o qual o Grupo como um todo possa conviver. Eu nos vejo indo em direção ao fracasso e preciso expressar minha oposição às tendências que operam já nesse estágio inicial.

Comportamento

A longo prazo as minhas críticas ao comportamento interno do grupo COMO UM TODO provavelmente são as menos importantes. Mas essa categoria de problemas é certamente a mais enfurecedora, a mais dolorosa. Eu quero abordar a questão da intriga dentro do grupo – o tipo de calúnia raivosa pelas costas que eu detecto e que produz apenas um resíduo fedido e espumante quando relações pessoais e de trabalho são misturadas em quantidades desproporcionais. Eu acho que o comportamento “não camarada” evidente em encontros e (tenho certeza) em conversas privadas sobre membros do Grupo é patético e inacreditável nesse estágio inicial, entre pessoas que supostamente são amigas. Aqui estão alguns dos significantes nessa semiose de merda: cochichar no ouvido de outro membro enquanto alguém faz alguma declaração ao Grupo, uma total perda de compostura e controle que culmina em insultos pessoais estúpidos, desagradáveis sorrisos amarelos quando são feitas sugestões, piadinhas pedestres que sabotam discussões importantes, olhos rolando, piscando, cruzando e fechando e um sem-número de outros contorcionismos faciais exagerados feitos na tentativa de produzir sentido, mas que apenas enchem o saco das pessoas. Quando temos reservas sobre alguma opinião dada, temos que aprender a articulá-las numa linguagem a mais clara possível. O ressentimento que está estampado em todas as nossas caras precisa ser decifrado de suas formas confusas e misteriosas para o bem das pessoas envolvidas e para o bem e funcionamento geral do Grupo.

Eu acho que incomodo o Grupo, por isso ofereço esta autocrítica: eu tendo a ser impaciente, pomposo, pedante, exigente, presunçoso  e – o mais perturbador para mim porque não consigo controlar – tenho uma tendência a demonstrar o meu conhecimento em busca de um força combativa. (Talvez eu esteja fazendo isso neste momento; vou falar sobre isso depois…) Mas, por outro lado, eu sinto que qualquer conhecimento ou informação que ofereça é automaticamente entendido como uma afronta à inteligência do Grupo, que informações acadêmicas são a priori inúteis ou de nenhum interesse para o Grupo. Eu sei que isso vai ser negado tenazmente na teoria, mas será que é imaginação minha quando vejo pelo menos quatro pares de olhos rolando quando eu insisto que a história ou a estética ou a economia política sejam levadas em conta? Estou sendo sincero quando digo que meus comentários (exceto pelos momentos em que estou obviamente ocupado com fraseologias) e meus desenhinhos e minhas pequenas propostas e meus pequenos escritos como este resultam de um entusiasmo com as pessoas e o projeto e o potencial desta porra de Grupo. Já houve insinuações de que eu sou ditatorial; não vou aceitar esse absurdo. Comportamento ditatorial acontece quando alguém nega as propostas e decisões do Grupo apenas com o interesse de promover seus caprichos subjetivos. Mas e se ninguém tenta, nem de longe, fazer uma sugestão coerente, concreta, informada e MATERIAL (na forma de texto, diagrama ou qualquer outro tipo de apresentação que possa ser examinada e analisada), mas, ao invés disso, simplesmente (muito simplesmente) arranca sem cuidado “ideias” que brotam de suas cabeças??? Todos temos ideias – mas o que precisamos desesperadamente são planos para atividades práticas. De um modo geral, nosso estilo de trabalho é uma merda. Quando alguém efetivamente trabalha, traz uma ideia concreta, raramente é apoiado – ao invés disso todos fazem o papel de crítico. Mas mesmo isso é teatro – os críticos de verdade pelo menos produzem uma literatura que apresenta uma posição clara, não importa quão equivocada. Vocês não podem imaginar a frustração quando você trabalha para propor algo – pesquisa as possibilidades – gasta tempo para articular sua sugestão, só para ser acusado (em geral subliminarmente) de intimidar o grupo, de ser absolutista, de “tentar demais” ou — o mais coxo de todos os insultos — “falar demais”. Se ao menos nossas bocas produzissem linguagem escrita – já teríamos grandes quantidades de material importante que poderia ser recolhido e usado por outros grupos interessados no tipo de trabalho que estamos tentando fazer. “Tentando fazer”. Vocês não veem o quão patético é isso?

A confiança não é uma emoção personalizada – ela tem uma função que deveria ser enfatizada nesse Grupo. Na realidade esse grupo tem poucos inocentes; não tem nem Lobos nem Ovelhas. Se vamos continuar ou não em nossa confusão neurótica, acanhada e balida é algo que só pode ser decidido por todos os membros do Grupo DURANTE O PROCESSO DE TRABALHO DO PRÓPRIO GRUPO. Temos diferentes áreas de especialização (desenvolvida ou emergente), níveis de proficiência em uma vasta gama de assuntos e um pluralismo saudável sempre que ele não desmorona em uma confusão de interesses. Não deveríamos ter nada além de entusiasmo pelo nosso projeto porque — e se alguém não se dá conta disto é porque realmente só tem olhos para o seu próprio cu — NÃO TEMOS NENHUMA OUTRA OPÇÃO ACEITÁVEL. Me recuso a “minimizar” minhas atividades para fazer com que membros do Grupo se “sintam” como se estivessem participando. FAÇAM ALGO! Melhor nos tornarmos um bando de amadores tagarelas, com as mãos cheias de desenhos e propostas e as bocas cheias de referências, do que um sanatório de murmuradores acomodados com cadernos e canetas em uma mão e uma lata de cerveja na outra.

Disciplina

O Group Material realmente precisa ser mais rigoroso, mais eficiente em nossos métodos de trabalho e organização, ser mais diligente com as prioridades se não quisermos decair numa galeria cooperativa, bagunçada, arbitrária e indistinta, que traveste falta de determinação com um traje de humildade, de “pé-no-chão” e de um comprometimento com o informal. Quando a disciplina não é consistentemente adotada por todos os membros de um grupo, então a autodisciplina e autoiniciativa é injusta e impossível – ela praticamente alimenta a preguiça ou o desleixo das responsabilidades dos outros membros. No Group Material já podemos ver que alguns indivíduos tendem a carregar o grupo, só para sofrerem reprimendas por conspirarem alcançar a hegemonia. Tudo isso leva a ressentimentos pessoais que são difíceis de desfazer.

Os membros do grupo deveriam ser altamente conscientes de suas responsabilidades. Me espanta como os membros abordam a realidade dessa iniciativa. O Grupo deveria pelo menos proporcionar um mundo de compensação pelas funções sociais que realizamos por dinheiro: fazemos design para corporações, ensinamos para o Estado, construímos lofts para pessoas responsáveis pela gentrificação, fazemos produtos inúteis e insípidos para o benefício de algum babaca em algum lugar. E mesmo assim sequer pensaríamos em nos atrasar para o trabalho no escritório – trabalho que é quase completamente contra os nossos próprios interesses –, mas quando uma sessão de trabalho no espaço do Group Material é agendada, as pessoas chegam se arrastando com mais de uma hora de atraso ou mesmo nem aparecem. E nos perguntamos por que o capitalismo avançado sobreviveu com tanto vigor por todo esse tempo – eles sabem como se organizar de modo eficaz! ESTA É A HORA E LUGAR ERRADOS PARA SERMOS COMEDIDOS. Todo mundo está tratando o Grupo como se fosse uma atividade de lazer, enquanto determinadas pessoas (a saber Mary Beth e Patrick, sem os quais tenho certeza que não teríamos 1. espaço, porque ninguém mais levantou a bunda para procurar 2. referências, porque a maioria de nós tem históricos de crédito ridículos 3. ferramentas básicas) estão perdendo dinheiro, perdendo tempo no trabalho e, certamente, perdendo a confiança na capacidade deste grupo durar sequer cinco anos. FATO: nem uma sugestão séria para uma 3ª (ou 4ª ou 5ª) exposição foi apresentada – apenas as mais vagas, evasivas e frívolas ”ideias para propostas de exposições”. Às vezes me pergunto se uma cepa de mononucleose não foi artificialmente introduzida no grupo pelo departamento de guerra biológica da CIA. O interminável gasto de saliva, a “elaboração” de polêmicas que o senso comum deveria nos dizer que só podem ser resolvidas com a práxis — tudo isso eu suspeito que nos deixa muito deprimidos. Muitos dos pequenos problemas práticos que vejo no grupo seriam reclamações triviais se não aparentassem ser prova irrefutável da incompetência coletiva do Grupo. Trivial?… se não podemos nem ligar para a companhia de luz, como caralhos vamos ser capazes de telefonar para a imprensa e fazer contatos para que as pessoas venham ao espaço, para estabelecer um público que nos apoie, para promover nosso trabalho não apenas em benefício próprio, mas, e isso é sério, para o avanço da história da arte na América. Nossa indefinição está se tornando enlouquecedora; é alucinante tentar manter 1001 assuntos e questões “em mente” sem nunca saber quando a “opinião” de grupo vai mudar ao capricho de um/uma que mudou de ideia, ou que não foi ao último encontro e não se preocupou em ligar para alguém para descobrir o que se passou.

Nosso projeto

O problema da disciplina, como o problema do comportamento, está ligado à questão que, parece, todo mundo no Grupo está tentando evitar: O QUE O GROUP MATERIAL VAI FAZER? Só o coletivo pode discutir isso, mas eu quero perguntar: seremos uma sociedade cooperativa de debate ou encabeçaremos um movimento cultural politica e socialmente informado? É claro que esses são os polos extremos das possibilidades, mas qualquer um que ache que mirar o padrão elevado é “impraticável” ou “ambicioso demais” foi vitimado pela velha pedagogia burguesa que diz a todos os membros da classe trabalhadora: “você não pode fazer nada além de trabalhar para nós!” Artistas ou pretensos artistas como nós tendem a sofrer de um complexo de inferioridade irracional quando se trata de colocar os nossos na reta da produção cultural efetiva. Somos o Group MATERIAL ou não? Francamente… quanta insegurança… como podemos ousar nos sentirmos medíocres ou hesitar fazer trabalho nesta era de Judy Chicagos e de Times Square Shows??? Isto para não falar nada dos completos reacionários que constituem a vanguarda americana de fachada! Nosso trabalho trata, essencialmente, da política da estética em um mundo onde a política é crescentemente estetizada. Nós certamente faremos mais mal do que bem – por exemplo – se não organizarmos nossas cagadas na teoria e na prática. (Vocês já não conseguem ouvir? “Então você é ingênuo e quer fazer arte socialmente engajada? Olhe o Group Material, veja quão longe eles chegaram…”). A disciplina é a base de qualquer ativismo eficaz (neste mundo, pelo menos) e o Grupo precisa trabalhar mais duro tanto individual quanto coletivamente. Temos que FAZER coisas – é por meio desta prática que vamos alcançar  uma competência e instrução reais ao invés de meramente consumir informações pra vomitar nas vernissages dos outros.

A Julie disse uma coisa interessante algumas semanas atrás, infelizmente não em uma reunião do G.M. Ela estava na sua sala, preparando suas obras. Não lembro o que a levou ao excelente comentário: “Eu simplesmente vou fazer essas coisas e não vou mais me preocupar em parecer idiota”. Enfim, o purismo derrotado! A Julie não é nenhuma heroína (ou é?!), mas esse é um exemplo de comprometimento (à produção cultural – à arte) e coragem. Isso provavelmente também fará com que ela consiga um monte de dinheiro a longo prazo. (Brincadeira, claro.)


Traduzido por Roberto Winter e Gustavo Motta.


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