Da impossibilidade crítica ou o negativo do produtivismo

Duas notas preliminares: 1) O que segue foi escrito em 2010. Acho importante assinalar que naquele momento a tal da “arte política” ainda não tinha dominado a cena por completo, mas a discussão era premente. Também a idéia de “política” dada na discussão geral talvez fosse um pouco diferente de como está colocada agora. 2) Originalmente, o texto não continha nenhuma citação de referencial teórico ou nota. Isso porque quis fugir a uma possível tentativa de legitimação ou filiação ou a modos de proceder academicizantes. No entanto, sem apresentar estas referências, o texto acabava estabelecendo um diálogo restrito. Assim, para esta edição, indico as principais leituras realizadas para as reflexões realizadas no final do texto.

Em homenagem a Edemar Cid Ferreira, Hélio Oiticica e Boris Arvatov

Apresentação

Este ensaio não é apenas uma reflexão acerca das contradições de alguma dimensão contestatória, crítica ou subversiva na arte, mas ele é também, em si, permeado de contradições.

Pode-se dizer que parto do problema, insolúvel, das relações entre arte e vida e do desengano das possibilidades emancipatórias da esfera simbólica, o que, a princípio, foi fator de negação e renúncia do fazer artístico. Mas foi justamente o fato de duvidar da arte como exercício da liberdade que, em um segundo momento gerou uma reflexão orientada para uma determinada crítica que, contraditoriamente, se concretizou como arte e, assim, gerou as perguntas deste texto.

No entanto, estes desdobramentos estão longe de ser qualquer tipo de mais uma nova proposta para a superação da arte alienada ou para a atuação numa dinâmica social emancipatória. Eles são apenas o fruto de um novo desengano: ausentar-me da arte como forma de suprimir esta contradição seria reproduzir, noutra esfera, a mesma lógica geral das coisas. Só a negação total poderia ser uma atitude radical que construísse caminhos de crítica efetiva à lógica da mercadoria.

Mas, qual negação total?

Ainda que a recusa individual não tenha força política alguma e possa ser entendida como pessimismo, imobilismo ou derrota, não nego à negação – à retirada do campo das artes – uma dimensão crítica.

Porém, como construir ruínas em um mundo em que tudo é reciclado e que, justamente por isso, não há lixo? O espaço para o negativo é nulo a tal ponto que ele se positiva a cada não.

O objetivo deste texto não é produzir teoria, desenvolver critérios ou, tampouco, realizar um “texto de artista”, com todos os seus mistérios e incoerências. É muito mais a tentativa de exteriorização dos caminhos tortos de alguém que se vê incomodado em qualquer papel social, em qualquer parte da divisão social do trabalho. A função dele é registrar um conjunto de perguntas, organizar as problematizações acerca da prática artística como prática social e seu entrelaçamento com alguma totalidade possível (o espetáculo?).

Paradoxos, contradições e perguntas         

Não me importa, neste momento, se estou desenvolvendo um pensamento pessimista, derrotista, ensimesmado, que anda em círculos para cair no abismo. Talvez eu esteja. Talvez.

Se a ideia de arte como expressão ou como pureza para mim é tão anacrônica como patética, por outro lado é bom que fique claro que não tenho como objetivo elaborar caminhos para uma renovação da potência crítica da arte, para uma dimensão política desta ou, de modo mais geral, para o fim da cisão entre arte e vida. Não tenho esta ilusão e, mais do que isso, considero uma ilusão perigosa ou, como diria o filósofo, cínica.

Esta ilusão, no entanto, é concreta e grande parte do sistema da arte é reproduzido justo por ela. Em busca de uma perspectiva crítica, combativa ou subversiva, alimentamos, reformamos, justificamos e criamos a tecnologia de ponta deste sistema.

Mas não quero igualar o trabalho do portão de ferro, que interdita com agressividade a entrada da galeria, à pinturinha do casaco laranja e ter isso como dado. O que dá para fazer, então, é continuar problematizando as possibilidades da arte se realizar como crítica, seus limites e ilusões concretas. Esta problematização se explicitou e se aprofundou, para mim, atentando-me às práticas, debates, trabalhos de arte e às teorias desenvolvidas pelas vanguardas clássicas.

A discussão sobre forma e conteúdo foi um viés central, ao longo do século XX, para a elaboração propositiva de um caminho que retirasse a atividade artística de seu campo segregado da vida social, de mera representação. A abordagem pelo construtivismo/produtivismo russo deste problema foi a contribuição mais importante e, sem dúvida, a mais radical, para esta discussão e acabou estabelecendo as bases para seus filhotes deformados (ou estetizados) ao redor do mundo: os tais “programas construtivos” (Bauhaus, Ulm etc), pais de nosso design chiquérrimo. No bordão da identificação da forma à função, ou da integração da forma ao conteúdo, estes programas-filhos visavam a reelaboração específica da forma artística, que encontraria o seu conteúdo nos processos de confecção desta mesma forma e em seus materiais e usos, de maneira a explicitar em sua aparência exterior o seu processo construtivo. A noção de utilitarismo nesta reelaboração se dava como proposta vanguardista de atualização dos objetos estéticos a uma época em que a representação e o ilusionismo já haviam entrado em colapso e em que um objeto artístico não poderia ser considerado senão enquanto estrutura material real, a coisa em si, e não mais se referir a algo externo. De qualquer modo, as projeções sociais advindas deste pensamento continuavam no campo do estético, de esfera cindida. Encarava-se a relação de forma e conteúdo como algo apenas interior da elaboração e da fruição/uso artísticos.

Já o debate do construtivismo e de seu desdobramento materialista, o produtivismo, acerca das relações entre forma e conteúdo buscou alcançar uma crítica social total. A análise deste movimento sobre os problemas que implicavam essa separação se pretendia como uma análise da totalidade da sociedade, a qual a ideologia burguesa havia dominado. Ela via no próprio capitalismo a origem da cisão entre arte e vida social. Neste sentido, na proposta construtivista/produtivista, a forma dos objetos já não poderia se referir, simplesmente, a conteúdos tidos como tematização, ainda que fosse a tematização dos próprios objetos e de seus próprios processos de trabalho, materiais, estruturas e usos, que estivesse implicada na forma. O trabalho formal só teria sentido se referido ao conteúdo humano da vida social. É por isso que, no processo de consolidação da plataforma produtivista a partir do construtivismo – processo intimamente relacionado à consolidação da Revolução e às transformações sociais desta –, a função revolucionária do artista passa de um propagandista, que tematiza ou representa, em seu trabalho formal, os conteúdos da revolução, para um organizador da vida material, que, ao ser encarado como um trabalhador, está de posse de e identificado com o próprio conteúdo da vida social: a produção, ou a cultura material. Ou seja, o próprio trabalho.

Para construtivistas e produtivistas, então, a separação era uma operação ideológica da burguesia. Seria, portanto, uma ilusão. Em outras palavras, má consciência. A esfera da arte era, nesta ilusão, o reino da pura forma, que apagava o caráter técnico e material que há em qualquer pôr-do-sol amarelo cádmio. O trabalho, a produção, a cultura material, as necessidades humanas e as novas formas tecnológicas estavam em oposição à torre de marfim burguesa, como o próprio conteúdo humano.

Porém, este “conteúdo humano da vida social” é absolutamente controverso.

O que é instigante nas formulações do construtivismo/produtivismo é que a radicalização do questionamento sobre os pressupostos artísticos e o lugar da arte é inseparável da crítica das contradições do capitalismo e de suas categorias. Todo este processo – e junto com ele várias descobertas, críticas e proposições – se dá conjugado à crítica social marxista-leninista e às condições materiais da revolução e a partir destas. Mas, por outro lado – e aí esta o ponto –, dá-se a partir do próprio trabalho em arte. A partir do trabalho formal, da invenção e da pesquisa artísticas e da análise do lugar social da arte e de suas formas correspondentes. Neste sentido, o que o produtivismo buscava superar – como aponta o crítico produtivista, Boris Arvatov – não era apenas a condição cindida da esfera artística, mas também, e por meio da própria arte, a superação das contradições estruturais do capitalismo. Se a arte isolada seria consequência das várias dicotomias estruturais do capitalismo, o novo artista – artista-operário, mestre-produtivista – seria o próprio sujeito revolucionário, que acabaria com a consciência fendida dualisticamente.

É quase como se a gente acreditasse, junto com eles, que pronto: estava aí o relâmpago do Benjamin. O fim da cisão entre arte e vida foi permitido neste momento: uma produção artística de uma força incrível, com sua tensão negativa e formas conflitantes aliadas a reflexões precisas e brados de morte da arte; duas áreas numa intimidade profunda e ainda com um engajamento impecável, bolchevique.

Estava aí o relâmpago? Na revolução bolchevique? E teria o relâmpago se apagado pelo “desvio da revolução”, expressado nas artes pela imposição do realismo socialista?

Diz que foi isso que aconteceu. Não fosse pelo “desvio”, seria o fim da alienação…

Faz tempo que, na linhagem dos “programas construtivos”, a discussão sobre forma e conteúdo se solidificou e se reduziu, como abordagem meramente artística, como uma questão de estilo ou método. Ela é facilmente incorporada a um item de qualquer programa de curso de design, publicidade, moda ou arte. Ou até mesmo no ensino básico, como um eixo de aprendizagem.

Também o viés político das elaborações artísticas acabou se tornando um tema artístico, entre tantos outros, perfilando entre listas de “interesses” do artista. Temas como a subjetividade, a cidade, o belo, a efemeridade, o vermelho, a memória, a arquitetura, a minha mãe, o espaço, a linha, os animais, o amor, o kitsch, a cobra, o pictórico, a vida, a morte, o azar, os céus, as imagens de Nossa Senhora. Em arte, hoje em dia, – como diz um professor meu – tudo pode.

E tudo deve, devo acrescentar. A necessidade democrática de arte passa pela necessidade de Mercado da variedade, da diversidade. (Só a democracia nos dá a possibilidade de ser diferentes, diz a moça da CBN.)

Isso porque, para além, ou aquém, de todos estes temas, elaborações e proposições estéticas, acho que existe uma forma que se sobrepõe a qualquer obra, a qualquer forma artística. Talvez ela seja a própria formamercadoria. Talvez possamos designá-la, mais especificamente, de formaarte, ou formaforma. Isso implica no fato de que aquilo que se coloca criticamente em qualquer reflexão sobre/em arte é automaticamente negado pela maneira como se insere esta reflexão no mundo. Crítico, poético, participativo, contemplativo, todo trabalho de arte está submetido ao fato de ser trabalho e ser arte e, portanto, submetido à lógica do valor. Assim, toda negação que se possa realizar em um trabalho de arte é, automaticamente, afirmação daquilo que se critica. Como uma aparição da mesma forma social que se sobrepõe a qualquer “conteúdo social humano”, uma forma abstrata se sobrepõe também à qualquer conteúdo estético.

Esta inversão – a afirmação daquilo que se critica a despeito ou por meio de sua negação – ocorre enquanto afirmação da forma pela qual se faz a crítica. De modo que existe uma contradição entre o seu conteúdo e sua forma. É a própria forma que nega o conteúdo.

O que nos diz uma obra, de dentro de uma galeria, museu ou salão, que busca atacar franca e frontalmente, esta mesma instituição? Ela diz o conteúdo de seu “ataque”? Ela pode se realizar como crítica com a conivência, incentivo, seleção e até a comissão da própria instituição? Por que a tal da instituição aceita e até necessita deste tipo de obra, deste tipo de “ataque”?

Este ataque ataca de fato? Alguns casos intrigam particularmente:

1 – O que quer o consulado britânico ao selecionar, premiar em R$15.000,00 e abrigar em sua galeria um projeto de obra que buscava explicitar, sarcasticamente, o polido discurso britânico da democracia e liberdade que “mascaram apenas porcamente estratégias e interesses mais políticos e econômicos do que humanitários”? Que colocava os ingleses como os responsáveis históricos por uma “lei que, por um lado, acabou com a escravidão e, por outro, iniciou o longo e conhecido processo histórico de marginalização social da população negra do país”? Que construía esta crítica por meio da chacota de características arquetipicamente britânicas e que, além de tudo, trancava com um portão gigantesco a entrada da própria galeria, impossibilitando e invertendo a própria prática de fruição artística?

“Estimular e fomentar a criação artística” é a resposta simples e direta que se encontra no site do festival. Podemos entender esta resposta como dissimulação sarcástica e cínica (tipicamente  inglesa), que mascara apenas porcamente interesses mais políticos e econômicos do que artísticos. Mas, para que procurar algo por detrás das aparências, se podemos olhar o conteúdo de verdade que elas mesmas nos trazem?  Em tamanha simplicidade não está a aparição da forma-social, da forma-forma, que coloca a arte como um fim-em-si em sua necessidade de reprodução incessante de seu próprio circuito que se retroalimenta? Esta tautologia automática não é, deliberadamente, a reprodução de um outro fim-em-si?

2 – Por que a tentativa de causar um problema para um salão de artes, a partir do envio de  vários projetos irrealizáveis, que se excluíam mutuamente caso não fossem aceitos juntos, acaba se resolvendo por uma exposição? O conjunto de tais projetos funcionava como um boicote: ou o juri aceitava os 31 projetos de uma vez, o que ocuparia e extrapolaria o limite de inscrições aceitas no salão, ou ele rejeitava todos de uma vez e, com isso, acabaria por esvaziar a própria mostra. Acontece que o juri aceitou todos os projetos e decidiu os expor como um único trabalho com o rótulo de “correspondência”. O juri ainda considerou a crítica muito pertinente e saudável, uma “afronta interessante”. Por quê? Porque, segundo um dos membro do juri, “de certa maneira acabou produzindo efeitos nos critérios, tornando a seleção mais abrangente”. A crítica institucional acabou servindo aos interesses de perpetuação das próprias estruturas do salão que, reformadas, poderiam seguir funcionando de acordo com novas formas artísticas, novas demandas da arte, o que manteria intactas e fortalecidas as normas legitimantes da instituição salão em geral.

Cooptação da crítica por parte do sistema? Anulação do ataque a partir de sua assimilação e aparelhamento? A princípio e, principalmente, do ponto de vista do artista que ataca e vê sua crítica assimilada, este pode ser tido como um típico exemplo de anulação da crítica por meio da estratégia de assimilação, tão típico das estruturas capitalistas. Ou, ainda, o artista pode entender que sua crítica se efetivou, abalou as estruturas da forma-salão e a subverteu.

Entretanto, seria, talvez, o caso de perguntar se a própria elaboração do artista, efetivamente engajado e acreditando na importância de seu protesto, também já não seria, de partida, determinada pelas mesmas formas que determinam as necessidades da tal da instituição. Afinal, a institucionalização da crítica institucional não é algo realizado apenas pela instituição, mascarando apenas porcamente interesses excusos. Os próprios artistas são os agentes desta inserção em um circuito que atacam. Cinismo? Interesses pessoais? Dependência “trabalhista” de um sistema que impõe condições?

O que faz com que os próprios artistas críticos, subversivos, sejam agentes da institucionalização da crítica à instituição?

3 – E daí, – eu peço desculpas pela colagem de exemplos em busca de raciocínio – mas vamos para um terceiro exemplo. Porque acho importante duvidar que a forma que nega o conteúdo artístico seja a própria instituição. E é por isso que, no terceiro exemplo, quero mostrar a intenção “livre” de um artista que, livremente, põe-se como agente da oficialização da crítica institucional por meio da reivindicação do reconhecimento desta como modalidade. Ele propõe, para formar mestres-artistas em um curso de pós-graduação, a disciplina “Crítica Institucional como Prática”, que tem como objetivo: “Perceber a crítica institucional como prática e desenvolver exercícios que instrumentalizem a pesquisa nessa direção”, assumindo-a como um gênero artístico que se engessa na instituição acadêmica e merece ser perpetuado em uma determinada linha de pesquisa, supostamente experimental.

Assim, quero reformular o que disse acima. Porque, talvez, pensar em “uma forma abstrata que se sobrepõe a qualquer conteúdo” seja dizer, simplesmente, que a forma-instituição se sobrepõe a conteúdos livres e críticos e que, somente neste processo, é que as obras perdem o corte. Como uma marca do Mercado que seja impressa à obra em seu processo de circulação e consumo, mas não na produção. Neste sentido, a impossibilidade da obra de arte se realizar em sua dimensão de efetividade crítica recairia nos artistas – pelegos – que acabam se vendendo e se submetem às instituições e as alimentam. Ou, nas instituições – capitalistas – que mascaram apenas porcamente seus interesses não-artísticos.

Quer dizer, então, que o reino da produção está livre dos fetiches? Que a arte, de fato, é, em si, o Território Liberdade e que a mácula é o sistema da arte? O artista (o verdadeiro artista) seria, então – a antena da raça? Acho que, caminhando por aqui, podemos cair nas mesmas figuras românticas e subjetivistas (o gênio) que a arte moderna se propôs a derrubar e, ao mesmo tempo, nas mesmas ilusões que ela se propôs a reproduzir – ou seja, na idéia de marca capitalista que o Mercado (circulação) imporia ao reino da criatividade, do trabalho concreto (produção)… Então, propondo uma reformulação do que disse acima, parece-me mais adequado tentar ver uma forma abstrata que determina qualquer conteúdo. E, assim, não dá para salvar a arte e nem os artistas.

Olhar para o momento paradigmático, experimental e radical, de crítica institucional no Brasil, que está, de certa maneira, nas origens dos casos que citei, pode ser importante para pensar nas determinações da forma.

Hélio Oiticica ataca as instituições culturais brasileiras (salões, Bienal), porque as vê como a polícia das tradições e hábitos e, por isso, como expressão do patriarcado, de um Brasil culturalmente dependente e subdesenvolvido. Mas são estas mesmas instituições que delineiam, a partir da década de 1950, o princípio de um processo caro para Hélio: o da formação cultural. E a arte teria um papel crucial neste projeto. Pois, partindo dos interesses puramente estruturais da obra (tempo, espaço),  encontrava-se em processo dialético realista (tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos). Para Hélio, “a cultura realmente efetiva, revolucionária, construtiva” seria aquela que venceria a “condição provinciana estagnatória”. Hélio abre assim o texto Brasil Diarréia: “O que importa: a criação de uma linguagem: o destino da modernidade do Brasil pede a criação desta linguagem”. Esta criação, ou seja, o desenvolvimento artístico, com o fim do academicismo a favor do experimental, teria papel central na construção do país. Sim, parece-me que teve mesmo. E agora que a cena artística nacional está construída, em bases sólidas de instituições, galerias, galeristas, escolas, obras, marchands, obras, curadores, obras, jovens curadores e muita especulação? Sim. Acabamos com o academicismo. Tudo, agora, se trata de invenção.

Porém, o que propõe esta crítica? Ou melhor, que sentido positivo guardam as colocações negativas de Hélio em relação à condição nacional?

A superação da dependência não seria, por outro lado, a constituição das estruturas capitalistas nacionais e soberanas? Em pé de igualdade com a cultura internacional e, portanto, apta à concorrência? À participação no Mercado? Se, naquele momento, a reivindicação de modernidade, de superação do subdesenvolvimento e contra o imperialismo se dava como uma posição que ocupava um lugar combativo, hoje, no “Novo” Brasil, fica claro como o sentido da modernização só poderia ser o sentido da formação de um sistema produtor de mercadorias. Isso quer dizer que a posição da vanguarda brasileira da década de 1960 e 70 não abarcava um sentimento “verdadeiramente revolucionário”? Que o discurso de emancipação mascarava, apenas porcamente, interesses mais políticos e econômicos do que humanitários ou artísticos?

Acho que não… Mas esta vanguarda, principalmente nos nomes de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Antonio Dias e outros, é colocada atualmente como paradigma, não de enfrentamento e crítica, subversão e ataque institucional, mas sim da maioridade estética brasileira (me desculpem: é claro, há uma disputa). Da consolidação de um produto genuinamente nacional moderno e em pé de igualdade, passível de exportação e de mostrar, como disse Hélio – em  sentido ideologicamente invertido – a “Face-Brasil”?  Suas inovações deram base e impulsionaram uma avalanche produtiva em arte, a qual se constituiu como o lado concreto, material, para a formação de todo um bombado aparato institucional cultural. O desenvolvimento, então, desejado por estes, parece ter ocorrido, mas com sentido negativo.

Então, vou dizer diretamente, mesmo correndo o risco de que isso apareça como tentativa arrogante de Teoria e não como problematizações de um cérebro de pessoa: não me parece muito “crítico” pensar que ocorreu uma apropriação a posteriori do trabalho e das formulações de Hélio (mesmo que tenha mesmo ocorrido uma apropriação horrorosa), ou seja, que a produção está isenta, como o Território Liberdade de Antonio Dias, e que a mácula-Mercado é a circulação, é o aparato institucional construído com a “vontade construtiva geral” de Hélio e contra a sua vontade – ao mesmo tempo. Afinal de contas, a forma-social não determina também as “subjetividades criadoras”? As ações dos sujeitos? Assim, não determina os conteúdos na sua própria produção? Se o país está implicado no processo global de constituição de um sistema produtor de mercadorias, se algumas categorias deste processo já estão constituídas, será que não é este próprio processo em curso, com sua necessidade de formação e reposição crescente de suas categorias (esta necessidade tautológica e destrutiva), que acaba determinando os conteúdos que aparecem, fetichistamente, como vontades, escolhas e invenções do sujeito?

Quero sempre me lembrar que a vontade não é do sujeito, mas da coisa. O caráter contestador, por isso, pode acabar residindo, justamente, em reivindicações que não busquem a destruição do capitalismo, mas sim o seu desenvolvimento.

Aí está o nó: me parece que buscar a construção de uma arte efetivamente crítica é, em última instância, buscar a construção de um sistema – alvo desta mesma crítica. Porque reivindicar arte, em um mundo estruturalmente cindido, tem que ser reivindicar sistema da arte, trabalho e valor. (Gostaria de fazer o caminho que o Jappe faz para pensar, analogamente, que a instituição é como a mais-valia, o desdobramento lógico da lógica do valor e não o seu fundamento. Mas não vou fazer.)

Aí a pergunta volta, mas sem força, com um descrédito tão grande que ela só pode ser feita num sussurro: Qual é a possibilidade de efetividade crítica de uma obra de arte?

Pode ser, como afirma Luiz Renato Martins, que “O fim do ciclo histórico da arte moderna ou das vanguardas foi acompanhado pelo fim da esfera simbólica e social da crítica”. Pode ser. Parece que algum fim realmente houve. Mas encarar as coisas sob este ângulo pode fazer recair na questão da consciência ou na da vontade política, algo que talvez seja melhor ver nas próprias estruturas capitalistas. Por aí, ao invés de discutir as impossibilidades da crítica em arte, eu deveria estar, como o autor, apontando a falta da crítica em arte, “a ausência de uma reflexão política radical”. Não estou negando esta ausência. Não estou e estou, porque, de alguma forma, cada vez mais ganha espaço esta (representação de) reflexão política radical. Mas quero também, talvez por isso mesmo, tentar olhar a que as reflexões que podemos ver como políticas e radicais levam. Até que ponto esta radicalidade não se reverte em afirmação das estruturas capitalistas, apesar das intenções. De afirmação da forma cindida, não só da arte, mas de toda a totalidade. Afirmação da separação.

A reflexão política radical do produtivismo, buscando superar a forma-arte, a forma-forma, apostou na própria forma social, na forma-trabalho. A reconsideração ontológica de arte como trabalho buscou reconstituir alguma unidade humana, mas na própria esfera produtiva, no valor. De fato, parece que na modernidade o trabalho reúne o separado, mas o reúne como separado. Será que um homem da época pré-capitalista teria tido a idéia de colocar no mesmo nível ontológico, enquanto “trabalho” humano, coisas tão diversas como a fabricação de uma bomba ou de um vestido, a execução de uma peça musical, a condução de uma campanha militar, a descoberta de uma figura geométrica ou a preparação de uma refeição?

Mas, para os construtivistas e produtivistas, a arte era uma esfera cindida justamente porque se negava enquanto trabalho. Fazer a arte participar da vida social seria fazer com que o trabalho artístico, afinal, não se negasse enquanto trabalho, não fosse mais uma mercadoria sui generis produzida por um trabalho sui generis, mas uma mercadoria e um trabalho como qualquer outro. Me parece bom que a arte não seja uma mercadoria sui generis, mas será que o caminho para isso seria transformá-la em uma mercadoria como outra qualquer? É claro que os produtivistas não enunciavam o seu desejo da obra de arte como mercadoria, pois não tinham como saber dele. A mercadoria na Rússia daquele momento ainda não dominava toda a vida social e, por isso, ainda aparecia de forma mais nebulosa, no âmbito da imaginação, tanto reativa quanto pró-ativa. E, assim, volto ao ponto da forma determinando o conteúdo. Se o significado da Revolução de Outubro foi o da modernização retardatária, então a tendência produtivista era a tendência artística que melhor espelhava, simbolicamente, este significado. Ainda que se esforçassem para que esta não se desse apenas no campo das significações, mas também no campo do efetivo, no campo da produção de mercadorias, e ainda que todos os sujeitos revolucionários se esforçassem para que o significado da Revolução fosse o fim do capitalismo e não a estruturação de suas categorias em âmbito nacional. Se para os produtivistas a estrutura capitalista residiria na propriedade privada e no Mercado e a produção seria a base sensível, o puro valor de uso e a estrutura de uma sociedade livre, por outro lado, a produção artística seria impregnada de ideologia burguesa e, por isso, separada. Assim, o proletário aparece aqui como o artista, a antena-da-raça, o produtor das formas materiais. O artista só poderia sê-lo, verdadeiramente, como proletário.

O ponto falho para mim, o chão que se abre como tapete pisado sobre um buraco, é a neutralização da técnica, que bolcheviques e produtivistas realizam, por meio da positivação da produção. Esta é a concepção que se reproduz, de maneira invertida, no pensamento artístico moderno (e pós-moderno, portanto). É neste caminho que não me pergunto sobre o esvaziamento do artístico na produção industrial, mas sobre contradições mais básicas: se a plataforma produtivista visava uma produção social onde o fetiche não teria lugar, como um objeto produzido industrialmente, para um consumo massivo, se configuraria em outra coisa, senão na própria mercadoria? Afinal, há como realizar alguma produção em larga escala que não esteja mediada pela lógica da troca? (Um sujeito concreto, afinal, não utiliza 20.000 cadeiras, por exemplo). Como a produção industrial pode trabalhar “diretamente para o consumidor coletivo”, como escreve um dos teóricos produtivistas, Boris Arvatov? Como uma produção baseada em um planejamento estatal poderia atender “necessidades concretas de sujeitos concretos”? Quais sujeitos eram esses? “Proletariado”, afinal, não designa uma categoria? Uma classe e, portanto, uma abstração? “Consumidor coletivo”, afinal, não é uma fantasmagoria?

Acho que dá para arriscar, então, que a negação do isolamento da arte era afirmação da sociedade do trabalho, da sociedade produtora de mercadorias (mesmo que sob o jugo do Estado e aparentemente não do Mercado) e, portanto, da própria vida cindida, embora, no argumento deles, reunificada em uma única classe. Mas, estando identificada ao trabalho, a arte deixaria de estar separada da totalidade da vida? Então a arte autonomizada não é tão autonomizada quanto a própria esfera do trabalho?

No entanto, se o caráter reativo, anti-sistêmico, da arte costumou ser buscado pelos artistas nas formas artísticas, conteúdos, estratégias de apresentação e relação com o público e com a instituição, o produtivismo vale ser olhado como contraponto, como exceção efetivamente crítica (em sentido duplo) de percepções agudas que acabaram negligenciadas pela arte crítica contemporânea. O radical deste movimento foi se propor a buscar nas próprias estruturas da sociedade o desenvolvimento de problemas artísticos, enxergando no caráter cindido da arte, a sua impossibilidade de crítica e  transformação da efetividade. O melhor é que esta crítica foi formulada ainda num momento muito precoce da formação do sistema de produção de mercadorias, momento próximo portanto de um imaginário de críticas à pré-modernidade, à lógica aristocrática, mais do que à modernidade em si. Enquanto a formulação artística crítica atual, do alto do escancaramento da separação consumada, não se conceitua como tal.

Mas a arte, em sua torre de marfim, não é a única esfera cindida. Faz parte da própria estrutura da modernidade a separação de todos os aspectos da vida e a submissão destas à esfera econômica. As esferas, autonomizadas, obedecem a leis e objetivos tácitos do fim-em-si econômico, de forma que tudo é explicado ou justificado em valores. Mas a plataforma produtivista tinha como crença o ideal proletário do controle consciente da economia, de forma que esta se tornaria o próprio espaço da vida. Um espaço que só poderia construir a sua unidade no esfacelamento.

Então eu me pergunto a pergunta da Otília Arantes: Houve êxito ou fracasso de um projeto que pretendia dissolver separação entre arte e vida? Porque, a despeito do (ou justamente pelo) “fim das utopias”, alguns dos ideais produtivistas parecem ter se realizado, ainda que com sinal invertido. A arte parece, de fato, fazer o seu retorno à realidade social na forma de trabalho. Como design, a arte produz industrialmente objetos úteis, para o cotidiano, de acordo com princípios racionais e construtivos. Será que não seriam os designers os verdadeiros artistas adequados ao tempo do agora? A antena da raça? É esta vanguarda estética do capitalismo avançado que pode ser encarada como aquilo que superou a arte, em favor da produção social.

Mas a arte burguesa superada, o “cadáver anabolizado” da arte, do alto de seu castelo de marfim, também toma a forma fantasmática de trabalho – embora atrasada, pois justamente em um momento histórico em que jamais poderá, de fato, assumir esta forma. Se a arte passa a ser trabalho, em um momento de crise deste, a sua integração não se dará pela indústria, mas sim pela mediação do capital fictício, pelo mundo dos negócios. O artista se transforma em empreendedor-gerente-relações públicas-operário e especulador de si mesmo.

E a arte fica nesta esfera-limbo, entre o trabalho (Trabalho concreto? Trabalho imaterial? Trabalho abstrato?) e o lazer (não-trabalho), entre a especulação e a produção de valor (Valor artístico? Valor de troca? Valor de uso? Valor intrínseco?), entre o subversivo e o que estabelece a ordem – sendo a ponta de lança das higienizações urbanas – entre o underground e o mainstream.

É neste ponto que está uma das grandes dificuldades (e um incômodo pessoal). Como fazer crítica da lógica da produtividade em arte? A pergunta seria melhor formulada do seguinte modo: como fazer a crítica do trabalho a uma atividade que se nega como trabalho e, assim, se impõe cada vez mais como trabalho (e formação de valor, se é que o valor se forma)? O artista – inclusive o designer – aparece como alguém que está livre da dominação direta de um capitalista e, assim, pode realizar a sua crítica, de acordo com a sua subjetividade. Mas, para discordar dos bolcheviques: “a dominação social no capitalismo não consiste, no seu nível mais fundamental, na dominação de pessoas por outras pessoas, mas na dominação das pessoas por estruturas sociais abstratas que as mesmas pessoas constituem”. E, nesta lógica, o artista é, como os outros, dominado. É, mas não sabe.

A luta de classes dos artistas pode aparecer nas aparentes contradições arte×instituição,  artistas×galeristas ou artistas×curadores. Mas nestas, o fato de que as pessoas implicadas estão apenas assumindo estruturas sociais abstratas, personificando categorias econômicas, fica ainda mais explícito, pois, além de tudo, na maioria das vezes se tratam de pessoas da mesma classe social e, ainda, com o mesmo interesse, que aparece como sendo:  “Estimular e fomentar a criação artística”.

No entanto, é claro que, nesta tautologia da esfera da arte, está pressuposta a tautologia do fim-em-si do dinheiro. O artista e todo seu conteúdo crítico elaborado nas formas mais experimentais e contestadoras, assim como as galerias e instituições, marchands e curadores, são  instrumentos de valorização, especulação, legitimação e não sei mais o quê.

Não sei, porque para saber, seria necessário um estudo empírico aprofundado sobre a forma como se insere, concretamente, a produção artística na produção e reprodução capitalista. Mas fico me perguntando sobre estas inserções. Elas saltam aos olhos a cada proposição poética, a cada exposição visitada. Me parece que a falta de corte do trabalho de arte está aí e acho que, se há alguma ruína a se construir, tem que ser perguntando, incessantemente, sobre as bases, as estruturas e as edificações – é uma pista dos produtivistas, de um jeito ou de outro. Se dá para ver, por um lado, uma centralidade da esfera da cultura e da arte na reprodução do capital e, por outro, a forma social determinando as formas e os conteúdos artísticos, é importante perguntar qual abstração específica que determina a produção artística, negando o seu lado concreto.

Pensar na obra de arte como mercadoria é importante, mas não suficiente, pois não dá conta de suas particularidades. Muitas reflexões que se detêm nesta constatação de categoria acabam retendo a crítica no momento da venda e isolando a produção como o momento-liberdade. Mas, sendo a arte, ao mesmo tempo, uma mercadoria à margem – já que não é a formadora de valor por excelência – e a mercadoria central – já que se torna a mercadoria vedete do espetáculo, suas especificidades podem se enquadrar nas categorias tradicionais e fugir delas, ao mesmo tempo.

Se, de qualquer modo, a arte no capitalismo não pode ser outra coisa que não uma mercadoria, fico me perguntando se o seu valor é, como nas outras, medido em tempo de trabalho. É claro, se ela é passível de troca, então há uma substância comum a todos os outros produtos do trabalho humano, que não pode ser outra coisa senão o próprio trabalho, medido em tempo. Mas será que a lógica deste tempo é a mesma? Este tempo, por exemplo, não tende a ser reduzido ao máximo para que se aumente a produção, como numa lógica industrial. Ou tende? Se não há nenhuma possibilidade de se realizar uma média social de tempo necessário para a produção de obras de arte, tal qual a produção de açúcar, ela, ainda assim, está em relação. A obra de arte se apresenta a um mercado e se põe em concorrência – concorrência dos espaços do visível. Se a ordem é aparecer, a ordem é produzir. Quanto mais se produz, mais se aparece. E, como se sabe, o que aparece é bom e o que é bom aparece. Portanto se se produz muito, necessariamente se produz bem.

De alguma maneira, então, não há um tempo abstrato que se impõe sobre o artista? Neste caminho seria difícil argumentar pela lógica emancipatória do trabalho de arte, como se o artista realizasse tão somente trabalho concreto e não trabalho abstrato. Porque a mediação abstrata do dinheiro está aí para todos.

Mas supondo que não se possa medir o tempo de trabalho empregado na produção de uma obra de arte, qual é a lógica que opera os seus valores? Ou, antes disso, como ela pode ter valor?

Quando entra em cena um certo jogo legitimador que apresenta como categoria crítica ou analítica o valor artísticocomo se este pudesse definir alguma posição real da obra de arte perante a sociedade – a confusão aumenta. (E é curioso quando a própria crítica marxista usa desta confusão para positivar o conceito de valor.) Aí, neste limbo categorial, onde tudo pode se dar em termos metafísicos ou de representação, não é possível ter alguma clareza ou realizar alguma espécie de crítica que não seja do nível do meramente simbólico. Que não seja a crítica de arte, mas, sim, crítica da arte. Porém, na medida em que há um forte descolamento entre o valor e o preço da obra de arte, o critério do tal do valor artístico começa a tomar aparência de válido. Afinal, como se justificaria tal descolamento exorbitante? Pela diferença entre trabalho simples e trabalho complexo? Pelo critério de raridade? Pela mera especulação?

É justamente nesta confusão que a arte assume cada vez mais uma função central na reprodução fictícia do valor, dar corpo à atividade especulativa. Seria este, então, o papel da arte? A sua posição concreta no entrelaçamento com as outras esferas? Ou seja, o seu lugar na reprodução e produção do capital? Afinal, a arte encarna, há muito, uma característica distintiva do capital fictício: o descolamento entre o valor e o preço. Seria a abstração do fictício, então, que se imporia no lado concreto da produção de arte?

Talvez seja um exagero dizer que a arte assuma uma função central na reprodução fictícia do valor ou, ainda, que o lugar da arte na reprodução do sistema capitalista é especificamente este. Talvez não seja. Mas, de fato, as mercadorias artísticas oferecem um bom corpo para o dinheiro ocioso se multiplicar tal qual um milagre. A arte brasileira é um “ativo” com “altíssimo potencial de valorização”. Além disso, o dinheiro ocioso, buscando corpo para se aderir e se multiplicar, dá corpo ao sistema das artes – muito corpo. A produção é impulsionada, assim, não só pelo aquecimento da compra e venda de obras, que podem entrar em uma “espiral descontrolada de valorização”, como também toda uma estrutura se monta por meio de um capital que, hoje em dia, sobra no Brasil – proliferação de salões, editais, bolsas de residência, centros e eventos culturais. Aqui é também o dinheiro “sobrante” do próprio Estado que busca se valorizar e aderir valor, por meio da arte, aos espaços.

O ponto a se chegar nesta parte do texto é: não sei como a arte se coloca na totalidade da forma de reprodução do capital. Não faço ideia. Talvez de todas as maneiras que levantei até aqui. Mas o que importa é que ela está submetida à forma social que reproduz a necessidade e as imposições do trabalho e de sua lógica onde quer que seja. Que ela é uma prática social como qualquer outra e, nesta condição, é uma prática que, de alguma maneira, reproduz as categorias do capital e o põe para funcionar. É importante dizer que, nesta lógica, a única efetividade possível do trabalho de arte se realiza pelas costas do artista. A finalidade da esfera artística é, para além de sua própria tautologia, a tautologia do capital. Qualquer conteúdo entra como “mero mal necessário”, como qualquer base material para a especulação ou para a valorização (fictícia) do valor.

O que dizer, neste sentido, da valorização da arte política, promovida pela 29ª Bienal de São Paulo? Que dizer do grandioso espetáculo da política promovido pela fundação e desempenhado pelos 156 artistas?

Vou dizer que qualquer tema poderia ser eleito para esta bienal que não importaria. O conteúdo seria o mesmo. A 29ª Bienal de São Paulo veio como vitória. E não dá para medir bem vitória de quê, de quem. Vitória da “dimensão utópica da arte” contra o vazio, decerto. Vitória, então, da produção contra a crise? O segundo andar, o andar do vazio, mais cheio do que nunca; a bússola-símbolo vista de cima de modo a formar o sinal do vazio (preenchido)… O esforço desta mostra era o de apagar os indícios de crise, escancarada na edição anterior e afirmar a arte como produção de valores, como a “face-Brasil” desenvolvida e emancipada. Terceiro mundo? Dívida externa? Nada, o Brasil agora pode ser credor. E daí a quantidade de capital sobrante para montar as estruturas culturais que possam dar corpo às “espirais de valorização”. A esfera artística só pode mostrar o momento da reprodução fictícia do capital como um momento de produção, de alguma concretude – ainda que simbólica – e de muito trabalho. Ela faz com que este apareça, então, como vitória, como otimismo e jamais como momento de crise, na qual a substância abstrata do valor se esvai.

A 29ª Bienal, então, surge como expressão e representação do momento econômico otimista de um novo Brasil, movido a agronegócio, pré-sal e muita, muita especulação. Neste invólucro, como pode alguma obra lá dentro se realizar como crítica a esta mesma lógica?

Se a política pode ser tema de uma Bienal como esta, então só pode ser porque ela é, como as outras, uma esfera sujeitada à forma social e, mais do que isso, porque se converteu em puro espetáculo e ficção do capital. A politização da estética não se mostrou, aqui, como o contrário do caminho fascista da estetização da política, mas levou, simplesmente, à representação da política nas formas artísticas e, portanto, a um outro tipo de fascismo, mais contemporâneo e adequado às necessidades econômicas deste momento do sistema produtor de mercadorias – o totalitarismo de mercado.

Pensando assim, foi muito bom encontrar o artigo de Suene Honorato (“As contradições da 29ª Bienal”), porque neste ela foi discutir o sentido da política nesta Bienal por meio de seu título, algo que parece ter escapado a todas as análises acerca desta edição. A despeito da interpretação positiva de “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”, verso apropriado livremente do poeta Jorge de Lima, este enunciaria, em seu contexto original (“A Canção de Orfeu”), uma dimensão negativa da faculdade criativa do homem, faculdade sempre a serviço de uma relação de dominação, que seria evocada, então, com lamento e não com esperança. A arte apareceria, em “A Canção de Orfeu”, em sua face contraditória e não emancipatória, como a que apresentam os curadores. Isso porque o livro conta a história de um poeta que quer fundar uma ilha com palavras. A contradição aparece, primeiramente, na impossibilidade de concretização de sua missão, já que a palavra carece de poder fundante. A outra contradição aparece quando o verso é enunciado, não pelo poeta, mas sim pelos habitantes originais da ilha, o que nega a narrativa de descoberta, já que ela já se encontrava habitada. Assim, aponta que, para onde quer que o homem navegue, sempre encontrará o que dominar: –”Há sempre um copo de mar para um homem navegar”.

Esta dimensão colonizadora da arte que a Bienal buscou esconder em seus próprios versos foi sistematicamente negada na mostra, enquanto o que aparecia era a dimensão contra-colonizadora, emancipatória. A 29a Bienal, com as obras que a compunham, deixava claro o sentido da tese 9 do Debord: “Num mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso”. (Parece que a arte ainda mantém sua capacidade elucidativa…)

O abajur do Cildo Meireles, por exemplo, que pareceu constituir a reflexão política mais radical ali dentro, apesar de se configurar no sentido da explicitação de seu próprio processo de trabalho e, consequentemente, nos mecanismos sociais de constituição da cultura, acaba apagando, justamente, seu próprio processo de trabalho e, consequentemente, os mecanismos sociais de constituição da cultura. A sua crítica mordaz e chocante a alguma espécie de exploração acaba negando o fato de que a exploração continua ali, ainda ou justamente, por assumir isso, e esta acaba reiterada pela obra que pretende criticá-la. A obra, assim, apaga o processo geral onde se coloca.

E, do processo geral onde se colocam estas obras, faz parte também a construção da imagem de um Brasil de 1º mundo, coroado com copa do mundo e olimpíadas, que não poderia ser manchado com um passado tão próximo de Bienais de arte em crise escancarada. E quem diz isso são os próprios executores da Bienal: “Nos últimos 50 anos, quando se falava em modernidade ou em coisa do primeiro mundo no Brasil, só havia duas coisas: Bienal e futebol”. O conteúdo central só poderia ser evidenciado pelos “verdadeiros artistas do empreendedorismo”: o dream team da nova diretoria executiva da Bienal, formado por advogados, empresários e executivos do mercado financeiro. Inclusive um trader do Bank of America, um ex-diretor e atual Consigliere do Banco Itaú, um guru na área de auditoria, que faz parte do board do Bradesco e foi braço direito do Pedro Moreira Salles, um master expert em arte e um sócio da McKinsey & Company. Então, a política na Bienal era mero “mal necessário”, definido a posteriori. A mesma diretoria executiva declara a distância de suas intenções da política, como conta Heitor Martins:

“Num encontro com Juca Ferreira falamos para ele: ‘Aqui, ninguém tem ambição política, a gente só quer fazer o negócio acontecer, promover, desenvolver a arte contemporânea, fazer ela participar dos processos sociais e fomentar uma atividade artística que possa se engajar na construção de uma nova sociedade, de um novo Brasil que mostre a sua face’”.

Da minha parte, esta contribuição para a constituição de um sistema fictício nas artes.


Referências
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