3 tentativas sobre arte e valor #3
Ao trocar arte por dinheiro, trocamos
uma abstração por outra.
Daniel Spoerri
No mundo criado pelo capitalismo financeiro, as obras de arte se transformaram em uma mercadoria exemplar. Com isso, a mercadoria arte é, por assim dizer, uma tábula-rasa para a produção de valor, onde quer que ela esteja e por quem quer que ela seja emitida (pois não há necessariamente um objeto material a ser fabricado). Uma vez que essa mercadoria não coloca objeções de uso, sua realidade dependerá exclusivamente do constructo simbólico fetichizado criado sobre ela. Diante da lógica do marketing pós-moderno, que tem por trabalho criar significados sociais para produtos,[1] a arte contemporânea se configura como paradigma – de valor que se valoriza de modo fictício, dispensando exemplarmente a categoria do trabalho.
Para que a obra de arte circule com esse potencial, será necessário criar significados a partir da abstração, atribuindo-os a ela. Para isso, é imprescindível a implantação de uma engenharia socioeconômica complexa em que significação equivalha à valoração (financeira). Nos países centrais, essa engenharia adotada é impulsionada e baseada por um duplo fator: de um lado pelas novas formas de acumulação do capital, financeiro, pretensamente pós-industrial, e por outro pela nova função adquirida pelo marketing contemporâneo.
Tal como o dinheiro não lastreado e a moeda fiduciária, a arte é fruto, na contemporaneidade, de uma convenção socioeconômica objetivamente atuante. Possui, porém, uma distinção fundamental: ela não necessita de um sistema jurídico-policial que a legitime, policie e regule. Seu sistema é mais refinado, autoabsorvido e autorregulado (como o do capital monopolista, que desloca de modo específico, sem necessariamente sair do jogo – as coordenadas liberais da livre concorrência).
É preciso, portanto, realizar uma crítica da economia política do sistema das artes para entender como se estabelece, nos dias de hoje: 1) a criação de obras de arte sob o jugo da forma mercadoria, à revelia da vontade ou objetivos imediatos de seus produtores; 2) como funciona a engenharia de valorização do valor dentro da lógica contemporânea (financeira) de acumulação do capital; e 3) como se absorve, se inviabiliza ou se elimina qualquer produção que não se dê sob essa forma.
A engenharia socioeconômica de significação/valoração
A partir dos anos oitenta, a nova forma de acumulação do sistema capitalista passou a funcionar, cada vez mais, por meio da valorização baseada na especulação e na ficcionalização da riqueza. A nova engenharia estruturada em escala global passou a se assentar antes na especulação de rentabilidade de ações e títulos, e na aposta de sua valorização, do que nos dividendos oriundos da produção.
Esse caminho adotado pelos gerentes do capital leva a uma complexificação das relações sociais de produção de valor inédita. Pois vêm a ser o próprio movimento de especulação, os sinais de interesse e desinteresse, as apostas, as ações coordenadas que passam a determinar a riqueza dos títulos e ações, não obstante as reais probabilidades de lucro de que derivam. Será em cima da confiança, ou das imagens erigidas de confiança, que a valorização se apoiará (e claro, na formação de capital fictício mediante a dívida estatal).
O valor, para muito além de sua substância, trabalho humano em geral coagulado em determinada quantidade (medida de grandeza do valor), aparece como fruto de sua própria capacidade e possibilidade de se valorizar. Almeja-se assim uma fórmula fantástica para o capitalismo, a que traria lucros e dividendos descolados dos movimentos reais de produção e consumo, e a possibilidade de tornar algo valioso sem qualquer conexão com necessidades e desejos. Isso, no que se trata do comércio de dívidas, empréstimos, títulos e derivativos.
Além disso, o sistema ficcional de geração de riqueza criado pelo capital pode ser – e foi – tomado de certa forma como paradigma para as relações comerciais em outras esferas da sociedade. As simples mercadorias de uso comum foram revestidas por criações simbólicas do marketing. Mais do que a simples criação de demanda e reprodução ampliada do mercado consumidor – objetivos do marketing do pós-guerra –, as mercadorias na atualidade chegam às prateleiras recobertas por significados socioculturais num processo de dupla fetichização, alcançando um patamar inédito de reificação social. A
relação fetichista posta pelo capital alcançou (…) um grau de abstração ainda maior, na medida em que as coisas produzidas sob a forma mercadoria foram recobertas por imagens produzidas também sob a forma mercadoria: são essas imagens que medeiam, desde então, as relações sociais como uma realidade aparente compensatória que está à frente dos homens de maneira tão isolada como força alheia quanto as forças sociais nela inseridas.[2]
Com isso, temos, de um lado, produtos que se valem do trabalho e das construções simbólicas produzidas pelo marketing para ampliar o seu valor, e de outro, o mercado financeiro que amplia o valor dos produtos (operando com uma ficcionalização de reputação gerenciada). Ambos se valem, portanto de uma abstração da realidade e da construção de uma imagem por sobre as mercadorias.
O conceito de branding é pensado usualmente em relação a produtos de consumo como Coca-Cola ou Nike. O branding adiciona personalidade, distinção e valor para um produto ou serviço. Também oferece prevenção de risco e confiança. Um carro Mercedes oferece a garantia de prestígio. Prada oferece a garantia da moda contemporânea elegante. […] Branding é o resultado final das experiências que uma companhia cria com seus consumidores e com a mídia ao longo de um grande período de tempo – e do marketing e relações públicas sagazes que trabalham criando e reforçando essas experiências.[3]
Nesse sentido, a mercadoria arte apresenta, exemplarmente em si, essa dupla função, de modo que uma alimenta a outra. Pois, na medida em que consolida determinada imagem ou significação social, a obra de arte garante para si sua reputação como instrumento financeiro, e vice-versa. Assim, nas décadas finais do século XX, vimos o capital construir no terreno da arte um ambiente controlado de negócios.
A partir dos anos sessenta, a arte fabricada nos países centrais do capitalismo caminha junto com a construção de uma economia da arte que busca estabelecer, de modo inédito, uma rede de valoração que não necessite de um distanciamento e juízo histórico, sob os quais se assentavam o comércio de arte clássica e moderna, rotuladas ou “classificadas”.[4] Dificilmente esse mercado é abastecido com novas mercadorias. Mas, pela premência de lucros maiores e mais velozes, o mercado procurou durante o final do século XX tomar totalmente para si as regras do jogo do valor na nova arte, de acordo com as novas possibilidades e procedimentos do capitalismo financeiro, dito “pós-industrial”.
O distanciamento histórico, que até então determinava a importância de uma obra, se tornou por demais demorado para o novo ritmo capitalista, pautado na hegemonia das finanças. Para poder ditar as novas regras seria preciso criar, estabelecer e refinar uma cadeia produtiva de valor inédita nos mercados tradicionais de cultura.
Nos anos 80,
as empresas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha fizeram da arte seu negócio, não apenas no nível individual do executivo da corporação (…), mas também, de forma mais surpreendente e significativa, no nível das próprias corporações. Ainda que o engajamento corporativo nas artes e na cultura seja obviamente anterior aos anos 80, foi nessa década, mais do que em qualquer outra, que se viu a utilização do poder do dinheiro corporativo na participação ativa na arena cultural.[5]
Esse desembarque do mundo empresarial no porto das artes provocou mudanças inimagináveis em sua economia política. (O Brasil, mantendo sua tradição de sócio menor do capitalismo, a partir da década de noventa, não demorou em reproduzir boa parte das estratégias adotadas em escala mundial para dominar a produção do valor em arte. Embora os dispositivos estejam já lançados, o aprimoramento do circuito ainda segue em marcha).
A par das transformações criadas pela nova forma de acumulação do capital e impulsionadas por elas, o “mundo das artes”, então, se estruturava para atingir as mesmas bases ficcionais de valor que se valoriza. Sobretudo porque, com isso, além de conseguir a criação de valor para as próprias obras de arte, ele será capaz também de contribuir com a valorização de mercadorias associadas a ela, na construção imagética do marketing.
Para esses objetivos que acabamos de precisar, serão convocados e estabelecidos atores que terão o poder de realizar esses intentos de valorização.
Os elementos constituintes do sistema de valor
O artista
Voltando às compartimentações desse sistema, a mais patente nesse processo contemporâneo de fabricação de obras de arte, ou aquela que o inicia, é a do sujeito que produz as obras de arte, o próprio artista, ou seja: o autor. Distante do modelo clássico do mestre/aprendiz ou da imprevisibilidade do autodidatismo moderno, a fabricação do artista contemporâneo majoritariamente deve passar pelos centros de formação criados ou adaptados especificamente para este fim.
As universidades e faculdades do capital (públicas ou privadas, entre as quais a USP e a UNESP, as universidades federais, ou a Fundação Armando Álvares Penteado, entre outras), cujo caráter normativo é semelhante ao das antigas academias neoclássicas, funcionam atingindo, de uma só leva, vários objetivos dentro desse sistema. Por um lado, elas garantem o abastecimento de mão-de-obra para o circuito, por outro, trabalham com a construção e sedimentação de verdades e interpretações sobre arte condizentes com a forma de produção a que pertencem – elegem as discussões formais como ponto de partida e trabalham em favor de uma pretensa autonomia da arte. Validam e desvalidam obras e artistas, e, principalmente, constroem uma historiografia para dar piso e lastro à arte contemporânea. Em último plano, essas instituições tentam monopolizar a validação do saber, e desacreditam uma formação que passe ao largo delas (a menos que uma formação errante possa também gerar valor); essa rede de poder e saber estabelece quem pode e quem não pode atuar na cena artística. Ao institucionalizar o saber, que sempre foi muito difuso e subjetivo no campo artístico, o campo universitário adquire uma enorme força na mediação das disputas sociais que de fato envolvem a produção e legitimação simbólica. Seguindo os preceitos da especialização acadêmica, arte seria, pois, ofício do especialista em arte, o autor.
Caberia ao autor ser o gênio-criador, ou o criativo, que captaria e metabolizaria os anseios, as angústias, as “discussões”, as “questões” mais prementes da sociedade, em produto de arte. Mas, como veremos, ele está impossibilitado de atuar sozinho nesse sistema.
O crítico-de-arte
Além dos autores e dos centros de formação (as universidades), há os “críticos-de-arte”, ou os peritos em arte contemporânea. Esses profissionais, ao contrário de sua antiga função, não têm por tarefa resolver problemas de atribuição (como na arte clássica).
A perícia das obras contemporâneas volta-se não para a autenticidade da obra em relação ao seu verdadeiro autor, mas para a autenticidade de sua existência enquanto arte (…). A certificação da arte contemporânea não passa, como a da arte antiga, pela atribuição, mas pela validação enquanto arte.[6]
Essa validação é realizada pelo assim chamado “crítico-de-arte” através da construção de um discurso positivo acerca da obra e do artista, que é publicada nos veículos especializados e nos catálogos de exposição, jornais, livros e estudos acadêmicos (cada setor de publicação também corresponde a um nível de validação criado). Mais do que simplesmente validar, a operação de que participam esses especialistas é de valorar a mercadoria criada.
Dá-se aí uma nova etapa da linha produtiva, que desde já podemos designar “manufatureira”. O “crítico-de-arte” irá recobrir a obra, através de seu trabalho especializado, de fundamentação conceitual, necessária para entrar no sistema. Para isso é necessária ainda outra ficção: a da universalidade (no tempo e no espaço) da categoria arte. Daí a série de “continuidades” e genealogias forjadas pela pena “crítica”, não especificadas historicamente (a mais famosa e praticamente onipresente é aquela que transforma qualquer integração genérica de material externo à “obra” artística contemporânea, ou seja, qualquer material que o artista não pôs a mão, num suntuoso varão da enobrecida família do ready-made). Em outro âmbito, o do público,
falar de arte como se fosse uma categoria universal exige uma negação persistente das necessidades representacionais do público não frequentador de galerias, que recebe uma ração constante de ‘alta cultura museológica’ como se não tivesse uma cultura própria.[7]
De acordo com as funções do marketing pós-moderno, começa-se, através das análises críticas, a construir simbolicamente a mercadoria arte. Com isso, sorrateiramente, as constrangedoras (e paradoxais) “críticas-de-arte” lisonjeiras de catálogo, que desfiam infinitamente genealogias legitimatórias e associações mentais bem-pensantes, foram naturalizadas. No entanto, ao contrário do marketing, que atua no terreno da criação de desejos e de identidades fetichizadas para o produto, a ação dos teóricos em arte tem por intuito continuar a própria produção iniciada pelo artista, trabalhando sua imagem conceitual que, sem ela, não pode existir, ou aparecer.
Brands
A validação e valoração por parte dos especialistas passa cada vez mais a residir, todavia, na própria figura do autor e não das obras em si. A validação de uma obra de arte não é independente do reconhecimento social de seu autor enquanto artista. É raro, nos dias de hoje, a validação de obras isoladas, uma vez que o tênue limite entre arte e não-arte pode conceber ações aventureiras para o mercado.
Nesse ponto, na contemporaneidade, o autor passa a se configurar como Marca. Assim como no mundo das mercadorias “não-culturais”, a partir do momento em que uma marca é consolidada – no que se refere à aceitação de seus valores, símbolos e significados junto a seu público –, qualquer tipo de mercadoria poderá ser vendida.
Nesse sentido, vemos um estímulo por parte do sistema para que a produção de um artista se materialize (ou se desmaterialize) nos mais variados suportes. Ao contrário dos movimentos da década de 1960, em que a construção formal da obra de arte e o suporte a ser utilizado ou negado impunham-se pela necessidade de intervenção nos problemas concretos, hoje a dedicação a múltiplas formas artísticas é alimentada pela necessidade de prover com produtos mercados diversos com poder aquisitivo desigual.
Consolidado o artista e o campo simbólico em que atua (as famosas “questões que discute”), a preocupação sobre as relações de forma/conteúdo e as possíveis contradições entre suportes são obnubiladas. Com isso, é sem constrangimento ou contradição aparente, que “performeres” realizam gravuras, ou fotógrafos projetam instalações. Nesse sentido, nos dias atuais, quando os artistas produzem obras imateriais, efêmeras, happenings, performances, ou tudo aquilo que não possa ser traduzido em tesouro vendável, elas se constituem na construção simbólica do artista como marca, para continuar o paralelo com o novo marketing. Elas atuam na valoração do próprio artista, que se “capitaliza” – assim como as instituições que o patrocinam. Da radicalidade da antiarte efêmera dos tempos idos para a constituição de uma autopropaganda institucional, o artista, também tornado mercadoria, reificado, cumpre um circuito de valoração: a academia, a pós-graduação no exterior (ou a residência artística, o que dá no mesmo), as parcerias, as festas… Tudo em nome da marca de si mesmo.
E como tem o poder de valorizar algo que a ela se associe, há tempos a arte é utilizada pela comunicação empresarial para a construção dos significados de uma outra marca. Mas o que se passa também é que o próprio mundo da arte se constitui na mesma estratégia. O infindável número de patrocínios e parcerias comerciais funciona, em verdade, como uma via de mão dupla. Não é somente a arte que empresta seu prestígio à mercadoria vulgar: o que se estabelece, na agressiva competição de criação do público consumidor, é uma relação de reciprocidade.
As galerias
O espaço ou instituição especializada que mais ou menos coordena as demais especializações é a galeria de arte. Em cada grande local comercial, o setor da arte contemporânea se estrutura em torno de um número limitado de galerias que
contribuem para o balizamento do território artístico e para a fixação das tendências dominantes. A cada momento, em um campo artístico desprovido de uma estética normativa, muitas escolhas são efetivamente possíveis e a regulação se opera através dos conflitos entre os grandes atores culturais e econômicos que denominam, teorizam os movimentos e que controla a oferta. A galeria (…), uma vez que tenha garantido o monopólio de uma tendência, estabelece uma estratégia de promoção destinada a fabricar a demanda suscetível de apreciar as novas criações artísticas. Ela combina, para fazer isso, as técnicas da promoção comercial com as da difusão cultural. Mobilizados em torno da galeria líder, todos os atores, econômicos e culturais, agem rapidamente e de comum acordo para que os artistas sejam inseridos em todos os lugares necessários, nas grandes revistas, museus, coleções.[8]
É a galeria, pois, o articulador de todo o sistema, e sua importância cresce na medida em que consegue fabricar sucessivas demandas. A galeria contemporânea, portanto, atua: 1) na fabricação da demanda, 2) na capitalização dos não vendidos e 3) na coordenação da rede de valoração. Quanto maior essa rede, maior é a possibilidade de valorizar, pois na atualidade é realizada uma operação pela qual a extensão no espaço geográfico substitui a distância no tempo histórico para validar e valorizar o artista.
As grandes exposições e museus
Para a fabricação dessas demandas, é necessário, entretanto, que o artista seja inserido no circuito das grandes exposições. (Circuito que, no Brasil, se resume a exposições como as Bienais de São Paulo e do Mercosul, os Panoramas do Museu de Arte Moderna de São Paulo e algumas outras mostras regionais de menor expressão. A importância dessas exposições reside no fato de que historicamente se constituíram como centro de referência para o grande público, formado também por não-compradores de arte).
No mercado da arte, a popularidade de algum artista é proporcional aos preços de suas obras. Trabalha para esse fator a arte-educação contemporânea, estruturada pelos museus e centros culturais como marketing direto das obras e artistas.[9] Com isso, em uma aparente antinomia, quanto mais “popular”, mais elitizado pode ser o seu consumo. Em verdade, para o marketing pós-moderno essa é uma afirmação há muito conhecida, pois, desde os anos 1980 a nova propaganda não pretende apenas formar a demanda, mas precisamente demonstrar aqueles que também não tem acesso a ela.
O curador
Por fim, cabe tratar ainda da figura que mais cresce em importância dentro do circuito: o curador. Causando ciúmes em muitos artistas, a assunção da figura que seleciona e promove exposições tem um papel também fundamental na nova ordem. É ele que articula parte dos trabalhos parciais do sistema e sua existência é um sintoma da condição da arte na contemporaneidade:
Nesta era de mega-exposições o artista muitas vezes opera como curador. […] A ascensão do artista-como-curador foi complementada pela ascensão do curador-como-artista; organizadores de grandes exposições se tornaram proeminentes na última década. Frequentemente os dois grupos compartilham modelos de trabalho, assim como os termos de descrição [de suas atividades].[10]
Para quem produzem os artistas? Para onde produzem? A partir do momento em que a arte prescinde de seu papel na história, e da realidade que a contingencia, a produção dos artistas, como qualquer outra mercadoria, é feita para um público abstrato, para uma realidade abstrata, internacional inclusive. Quando a arte se conforma, atomizada, sem fricções ou dialética interna, como forma mercadoria, ela necessariamente pode parar em qualquer canto, dentro de qualquer situação. A arte como valor, abstrato, e com funções individualizadas, necessita ter conexões de sentido recriadas a cada vez que aporta em uma exposição. Donde o papel do curador. Ele recria, como simulacro, a ligação com a realidade, no espaço e tempo que necessita a exposição, num discurso inventado de história e imanência.
Desigual e combinado
O sistema de valor criado pelos agentes capitalistas no campo das artes engendrou uma situação aparentemente paradoxal: um dispositivo produtivo, de escala pré-industrial, em que artistas e obras de arte compartilham as mesmas características de especialização que qualquer outro setor da manufatura clássica, associado com os objetivos, lucros e sistema gerencial próprios do sofisticado capital financeiro.
Essa estrutura produtivo-administrativa, que reúne processos tão distintos, tem sua razão de ser: maximização de lucros, controle total da produção e da circulação da mercadoria. Em última instância: domínio total do circuito de valorização do valor, que inclui ferramentas de controle, gestão, destinação e cálculo de demanda – bem como a “toyotização”, dentro dos ateliês e dos espaços expositivos, das relações de trabalho.
Essa especialização manufatureira, cujos principais elementos constituintes estão listados acima, reflete outra que o mercado impingiu ao próprio cenário cultural mais amplo: a atomização e a segmentação. Desconectado, o campo da “cultura” é dividido em setores que se compartimentam para uma melhor satisfação do público. A especialização, como mostra a história do capitalismo, é um dos trunfos que o sistema criou para aceleração da produção e, ao mesmo tempo, controle da linha produtiva. E é natural que a assim chamada indústria cultural também se valesse desse método empresarial. Portanto, as mais variadas artes, que antes dialogavam ou se fundiam com o intuito de encontrarem caminhos alternativos, relacionando-se com a realidade, hoje são separadas para serem produzidas com velocidade e em nichos de mercado, de acordo com as ordens de segmentação do marketing pós-moderno. A atomização, portanto, atinge tanto o âmbito da produção como o do consumo.
Os centros de formação de mão-de-obra, os artistas, as galerias, os curadores, são partes desse processo. Isoladamente eles perdem seu significado, que, em verdade, reside na atuação em conjunto da maquinaria de produção da mercadoria arte. Essa maquinaria se assenta sob aquela condição de aparente paradoxo: a de ativar uma produção manufatureira que serve à lógica especulativa do capitalismo financeiro.
Obviamente, as obras de arte contemporâneas são muitas vezes produzidas, integralmente, por uma única pessoa: seu autor, o artista – muito embora, cada vez mais, o artista seja apenas o idealizador e a fatura fique por conta de operários contratados. Contudo, a analogia com a produção manufatureira opera não no momento de confecção empírica da obra, mas em todo o processo de validação e valorização dela, já no âmbito de sua circulação. Conclui-se, pois, que, na atualidade, a fabricação da obra não se resume a sua construção material, porque mais do que validação, o que se observa é, de fato criação de valor.
Nos moldes clássicos da divisão do trabalho capitalista, a renda dos setores médios formados por trabalhadores de colarinho branco (funcionários públicos, profissionais liberais, empregados do setor de serviços, operadores financeiros etc.) provém da divisão de uma parcela da mais-valia extraída do trabalho produtivo pelos capitalistas. No caso da arte contemporânea, mais do que divisão de uma parcela dos lucros do capital industrial, comercial ou fundiário, pode-se falar, relativamente, na existência de trabalho produtivo (desmaterializado!) nesses outros setores (crítica, curadoria, arte-educação etc.), pois somente no fim da linha fabril composta pelos elementos ou partes constituintes que apresentamos é que a mercadoria arte se constitui.
Como Marx observou em sua análise sobre a manufatura, os frutos dos trabalhos parciais de cada artesão não são, em si, mercadorias, pois somente o produto coletivo dos trabalhadores parciais transforma-se em mercadoria (assim como na linha de produção industrial as diversas peças que juntas compõem um carro, por exemplo, não circulam como mercadorias na esteira).[11] Os trabalhadores parciais de nosso processo, entretanto, apesar de não trabalharem na mesma oficina ou galpão, atuam de forma conjunta na confecção do produto. O artista (e seus operários), o crítico-de-arte (ou historiador), o galerista, o curador, o professor universitário, o montador, o arte-educador, são, entre outros, os trabalhadores parciais desse processo. Não podemos dizer que esta cooperação se dê entre trabalhos totalmente independentes, privados, de compra e venda de mercadorias, próprios da divisão do trabalho na sociedade capitalista moderna, conquanto algumas partes do referido processo se estabeleçam dessa forma (como no caso da montagem de exposições ou na contratação de serviços educativos, todos, aliás, terceirizados). Pois mesmo que não tenhamos, algumas vezes, a figura do capitalista que unifica e gerencia os trabalhos parciais para transformá-lo em mercadoria, a analogia feita com a produção manufatureira se dá por meio da relação íntima, mutuamente coordenada, entre as partes desse processo, sob a ordem unificadora de tornar a obra valor. Por assim dizer, nos termos do jargão financista dominante, uma “vontade geral” de valoração.
Nessa empreitada, o capitalista pode ser ora um, ora outro (na maior parte das vezes é o dono da galeria, ou um “marchand-empreendedor”), ou mesmo uma associação deles, mas em qualquer ordem que se estabeleça, o produto do artista só se torna mercadoria – e arte – ao realizar o circuito que o finaliza.
O produto artístico inicia o processo materialmente acabado, e parte para a fase seguinte, tal qual numa esteira fordista de confecção simbólica – a obra irá para a exposição, para a crítica, para a galeria, para o público e para o consumidor. O processo de produção e circulação se encontra, e quanto mais circula, mais bem acabado e valorizado será o produto. O fenômeno que se observa é de que na contemporaneidade a arte só tornará a ser arte (no sentido estrito, nome adotado pelos participantes do circuito), no mesmo momento em que também se torna mercadoria. O que se vê então é que a elite econômica-cultural pretende realizar, através de sua rede de valorização uma utopia do sistema financeiro: a de poder prever a alta, e poder ele mesmo valorizar uma ação ou ativo, já que domina todos os condicionantes.
O refinamento desse sistema de valor, de produção manufatureira aliada à lógica do capitalismo dito pós-industrial, torna a definição estética da obra de arte domínio estritamente econômico. Não se trata, no entanto, de uma orientação da forma pelo que está dando lucro ou ainda do poder do dinheiro, encomendando obras de acordo com o gosto do cliente. Trata-se, sim, de favorecer, pela estrutura de circulação criada, somente a aparição daquelas obras e artistas que podem ter potencial econômico.
A constituição dos valores artísticos contemporâneos, no duplo sentido estético e financeiro do termo, efetua-se pela articulação do campo artístico e do mercado. O preço ratifica, com efeito, um trabalho não econômico de credibilização no plano estético, um trabalho de homologação do valor realizado pelos especialistas, isto é, pelos críticos, historiadores da arte contemporânea, conservadores de museu, administradores da arte e curadores. Uma vez obtido no mercado, o preço facilita e acelera a circulação e a internacionalização do julgamento estético.[12]
Desse modo, as obras de arte que se tornam públicas necessariamente já passaram ou estão passando pela esteira de produção, ou seja, pelo Sistema de valor. Nesse sentido não há arte fora da mercadoria. (E, portanto não há estratégias para uma arte ou artista ser mais ou menos comercial, mais ou menos “vendido” como sugerem livros como Sete dias no mundo da arte de Sarah Thornton ou o texto “Os 7 mandamentos da arte”, capa da Revista Bravo de outubro de 2011, ou, inclusive livros de tendência política conservadora como Cultura ou lixo? de James Gardner, A Grande Feira de Luciano Trigo ou ainda Argumentação contra a morte da arte de Ferreira Gullar).[13]
As obras que não participam desse processo formam como que um contingente de reserva, desempregadas, esperando na fila para serem obras de arte e, consequentemente, mercadorias. Vale lembrar que um trabalho parcial, não associado a outros trabalhos parciais ou cristalizado num produto, não é nada, senão um imponderável devir. Aqui, do mesmo modo que aos trabalhadores, quem define o emprego de uma obra será o capital, e não mais o artista ou decisões políticas da sociedade.
É o capital que dará às obras ou eventos artísticos ocupação, emprego e sentido. Sem alma, as obras vagam, perdidas, vítimas também do processo de sua existência fantasmagórica como forma valor, potencial ou realizada. É importante percebermos que, quanto mais esse processo se solidifica, mais se eliminam as possibilidades de uma ativação de obras de arte que não passe pela lógica vigente. Mais se eclipsa a força da sociedade em reconhecer e validar manifestações e trabalhos de arte fora dessa estrutura descrita. Correlata à formação dos artistas, também é subtraída das disputas sociais a possibilidade de conceder sentido histórico à produção artística.
Àquelas obras ou artistas que não encontram ocupação e não finalizam seu processo de produção simbólica no sistema engendrado pelo capital tem dois destinos possíveis: ou ocupam outro setor da economia (como folclore, design, moda, publicidade, mercados regionais etc.), ou simplesmente encontram o esquecimento. E aqueles que não compactuam com o sistema vigente, não encontram forças (ainda) para reestruturar uma rede histórica, totalizante, de significação.
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Ao descrever esse cenário, podemos ver afinal o avanço do capital e de suas forças destrutivas no terreno da cultura. Longe de nos assustarmos, contudo, serve-nos, com efeito, para enxergarmos nossa atuação dentro dessa engenharia de dominação. Serve-nos, por fim, para desalienar o trabalho e o trabalhador dentro desse sistema. E assim, começarmos a erigir a resistência.
Pós-escrito periférico
As particularidades históricas do caso brasileiro merecem uma análise específica, que, infelizmente, ultrapassa os limites do presente artigo. Importa deixar aqui anotado o movimento geral de (re)alinhamento e adequação, desde meados da década de 1970, das instituições, discursos e produções artísticas brasileiras ao sistema internacional de circulação da dita “arte contemporânea” – e os limites da condição periférica do circuito artístico brasileiro.
Assim, com impulso evidente na década de 80, vimos no Brasil a implantação desse novo sistema das artes. No âmbito estrito da iniciativa privada, podemos perceber nesta década: o surgimento de inúmeras galerias (para os mais diversos públicos-alvo); a aproximação das galerias com a universidade; e, a partir de meados da década de 1990, a criação de institutos e centros culturais de empresas e bancos; a realização de mega-exposições; a criação de feiras e salões de arte com novos artistas; a criação de empresas especializadas em arte-educação, em turismo cultural, em montagem e produção de exposições, em comunicação visual, e em marketing cultural; ascensão de editoras especializadas; novo jornalismo cultural de assessoria de imprensa; criação de público e colecionadores para arte contemporânea; feiras de arte de jovens artistas ou de arte segmentada.
No âmbito das ações governamentais, foram imprescindíveis para o desenvolvimento do processo analisado as mudanças estruturais no papel do Estado, que desregulamentaram a economia, enfraqueceram as leis trabalhistas e criaram o ambiente necessário para a financeirização da vida econômica. Além destas mudanças estruturais, desde a década de noventa adotou-se como política cultural medidas claramente privatistas, capitaneadas pela Lei Rouanet, que tornaram o dinheiro público o combustível das ações privadas na cultura.
Por fim, como paradigma de dominação, a engenharia da arte contemporânea, ao articular as mais diversas esferas de poder, não poderia deixar de traçar a geografia de sua atuação – etapa avançada de um poder colonizador. Em São Paulo, há inclusive um “Mapa das Artes” que designa e demarca, geopoliticamente, o território que possui e que fabrica arte, para, ao mesmo tempo, poder excluir todo o resto. O “mapa das artes” hoje já se expandiu, para demarcar também a cidade do Rio de Janeiro, de Manaus e algumas outras cidades do interior do país. Aos poucos, vamos descobrindo, do ponto de vista do capital, onde se tem e onde não se tem arte em nosso país.
Ao montar o sistema de valores da “arte contemporânea”, o Brasil se filia, como mercado periférico, ao sistema internacional. Desdobra-se daí que, como parte da tradicional lógica de país subdesenvolvido, a consigna de artista internacional passa a ser uma das maiores valorizações obtidas dentro de nosso cenário.
Notas
[1] “A mercadoria, que já é um fetiche, se duplica numa imagem de prestígio, poder, juventude, sucesso, competência, etc., portanto, num simulacro de si mesma e é esse simulacro que opera na esfera do consumo”. Marilena CHAUÍ, Escritos sobre a Universidade (São Paulo, Ed. UNESP, 2001), p. 22.
[2] Robert KURZ, “Prefácio”, in Anselm JAPPE, Guy Debord (Petrópolis¸ Ed. Vozes, 1999), p. 6-7. Segundo a clássica definição marxiana, o fetichismo é a autonomização de uma relação social, que inverte o papel social das coisas e das pessoas: “é como se as coisas – no caso, as mercadorias – se movessem por conta própria. Na verdade, porém, elas apenas expressam as relações sociais dos próprios homens que produzem e trocam essas coisas. Se elas o fazem, porém, não é por acaso, mas porque essas relações entre os homens adquiriram a forma historicamente específica em que não ocorrem senão pelo contato das próprias coisas, pela troca de mercadorias. Daí serem elas portadoras dessas relações sociais, isto é, expressarem o lado social do trabalho que aos próprios produtores aparece como algo puramente privado. Com isso, ocorre um ‘quiproquó’, uma inversão entre o papel social das coisas e das pessoas, do objeto e do sujeito”. Jorge GRESPAN, in Karl MARX, A mercadoria, (São Paulo, Ática, 2006) p. 69. Em sua “segunda” fetichização, a relação social entre as pessoas é mediada uma vez mais, agora pela imagem gerada pelas coisas. É pela necessidade de ser algo que as pessoas vão ao mercado atrás das significações produzidas pelas mercadorias. A mercadoria e o que ela simboliza, ambos valores de uso produzidos pelas pessoas, aparecem, como num feitiço, portando a capacidade de produzi-las.
[3] Don THOMPSON, The $12 million stuffed shark – the curious economics of contemporary art (Nova York, Palgrave, 2008), p. 12.
[4] Arte histórica que, até hoje, se configura como um dos mercados mais caros do mundo, e se estabelece em cima de peças raras que foram qualificadas pelo próprio desenvolvimento do colecionismo histórico. Peças que são classificadas por historiadores, e que têm seu preço firmado pelo tempo, pela raridade e pela importância histórica.
[5] Chin-Tao WU, Privatização da Cultura: a Intervenção Corporativa nas Artes Desde os Anos 80, trad. Paulo Cezar Castanheira (São Paulo, Boitempo, 2006), p. 297.
[6] Raymonde MOULIN, O Mercado da Arte: Mundialização e Novas Tecnologias (PortoAlegre,EditoraZouk,2007),p.32.
[7] Chin-Tao WU, A privatização da cultura, op. cit., p. 63.
[8] Raymonde MOULIN, O Mercado da Arte, op. cit., p. 28.
[9] Ver Guilherme Leite CUNHA, Mediação cultural em exposições de arte contemporânea, dissertação de mestrado apresentada ao PPG em Estética e História da Arte (MAC/ECA-USP), sob orientação de Dilma Silva (São Paulo, PGEHA-USP, 2013).
[10] Hal FOSTER, “Chat Rooms”, in Claire BISHOP (ed.), Participation (London, Whitechapel/ MIT Press, 2006), p. 192.
[11] Ver Karl MARX, “Cap. XII – Divisão do Trabalho e Manufatura”, in O Capital, Livro primeiro, Tomo 1, trad. Régis Barbosa e Flávio R. Kothe (São Paulo, Abril Cultural, 1984), p. 266.
[12] Raymonde MOULIN, O Mercado da Arte, op. cit., p. 26.
[13] Sarah THORNTON, Sete dias no mundo da arte, trad. Alexandre Martins (Rio de Janeiro, Agir, 2010); Gisele KATO, “Os 7 mandamentos da arte” in revista Bravo! (São Paulo, Ed. Abril, outubro 2011); James GARDNER, Cultura ou lixo? Uma visão provocativa da arte contemporânea (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997); Luciano TRIGO, A grande feira – uma reação ao vale-tudo na arte (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009); Ferreira GULLAR, Argumentação contra a morte da arte (Rio de Janeiro, Ed. Revan, 1993).
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