Medio, Monitoro, Valorizo

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“A educação consegue tudo: faz dançar os ursos”.[1]

De uma cena de Godard partiria uma pergunta. De um ruído dissonante de Varèse, talvez uma sugestão. E de uma improvisação de um bailarino da Judson Church surgiria, alinhado a uma contextualização, a instigação de possíveis sentimentos – tudo de acordo com as atuais diretrizes arte/educativas: deve se provocar, questionar, suscitar a reflexão, contextualizar um pouco… Mas sem explicar, deve-se encontrar um certo “estar entre”. Talvez pareça (ainda) inconcebível imaginar a existência de um profissional que durante um filme ou uma peça musical discutiria conosco o impacto artístico provocado, contudo, se tratarmos de obras visuais, isso já se localiza no terreno da normalidade. Hélio, Lygia, Tunga, hoje em dia, todos se expõe acompanhados. Os artistas mais novos, os “contemporâneos”, não se imaginam sem eles: o proletariado do setor educativo.

Da normalidade à normatividade: conquanto alguns teóricos intentam levar as premissas da arte/educação para essas outras áreas, somente o campo visual conseguiu constituir um sistema, um todo organizado, que o tornou, em nossos dias, imperioso a ponto de influir na própria produção de arte, concebida, hora ou outra, já prevendo a participação de mediadores. Essa primazia possui, como veremos, certo sentido histórico, e se articula como uma resposta conveniente às necessidades atuais. Por mais hermética que seja uma película ou uma coreografia, por mais truncadas que possam parecer, elas se estabelecem, em sua maioria, numa relação direta com seu público (por menor que seja), prescindindo de mediação.

Eis, aqui, a nossa palavra mágica: mediação. Uma função que cria uma nova categoria produtiva, que tem por tarefa mediar uma produção cultural para os próprios participantes dessa cultura se coloca como um paradoxo pulsante. No entanto, esse próprio aparato criado pela mediação naturaliza-se como um dado imprescindível. Quando assim se coloca a realidade, é tarefa da crítica desnudar sua materialidade e sua razão histórica.

A mediação cultural estaria se expandindo para as mais variadas experiências artísticas como uma resposta às vicissitudes da contemporaneidade. De um lado, a velocidade, a globalização e o acúmulo excessivo de informações. De outro, uma arte que beiraria o rompimento completo de qualquer linguagem. Nesta situação, redundaria a necessidade dessa função mediadora, que objetivaria religar o indivíduo a uma produção cultural maximizada e incomunicável, que, por assim ser, não teria a possibilidade de se coadunar com toda sociedade. Da mesma forma, a assunção de múltiplos bens culturais no tecido social obrigaria, no terreno expositivo e para fins dialógicos, um intermédio que desse conta das mais diversas sociedades simbólicas. A produção cultural estaria, pois, em desalinho com seu público, que se encontra: desorientado com o acúmulo de produção simbólica; e/ou ignorante em relação a essa produção; e/ou sem “acesso” a ela. Portanto, na linha de frente, como resposta a esse descompasso, estariam os mediadores.

Economia política do espaço expositivo: trataremos nesse texto mais especificamente de analisar o terreno no qual atua esse primeiro batalhão, sem perder, no entanto, a dimensão de toda engenharia de mediação cultural, que implica outras figuras (hierarquicamente superiores), como produtores, animadores e gestores culturais.

Para resolver o “extravio” citado, a mediação compreende o problema do lapso entre exposição da obra e apreensão do público em duas chaves: da informação, portanto da comunicação, e do saber, portanto da educação. As duas se sustentam a partir da mesma lógica: a de que a produção cultural, e os meios para tal, são restritos a um grupo social, de modo que ela deveria se democratizar. Nos termos de uma leitura (rasa) de Bourdieu, trata-se, então, de distribuir o capital cultural produzido e regulado pelas elites…

Ao considerar a cultura uma ferramenta essencial à construção da identidade do país e um meio eficaz na promoção da cidadania, o Itaú Cultural busca democratizar e promover a participação social no âmbito cultural.

Por detrás do discurso de empresas e bancos; por detrás do tom civilizatório de uma hipotética jornada democrática que muitos institutos dizem querer empreender – e cujo caráter absurdo deixaria qualquer vira-lata de orelhas em pé –, está incluído uma efetiva política de neutralização e conciliação social (ou noutros termos: inclusão social) – entretanto, poder-se-ia dizer que, mais do que democracia, trata-se de uma simulação de participação. Pois no mesmo momento histórico em que os frágeis direitos sociais (introduzidos, no Brasil, por alguns governos nacionais-desenvolvimentistas, num arremedo de estado de bem-estar social) são atacados e desarticulados pela elite, há um avanço e um chamado à participação cultural. Entenda-se bem: do espaço público da política, lócus das disputas de poder, para a constituição de um espaço público da cultura, da integração ao poder. O que seria, em verdade, nada mais do que o espaço público configurado pelo mercado.

“Tudo se passa como se com as novas responsabilidades econômicas se estivesse devolvendo aos indivíduos a cidadania através de atividades lúdico-culturais patrocinadas pelos grandes centros (…). São de fato lugares públicos, mas cuja principal performance consiste em encenar a própria ideologia que os anima: são quando muito sucedâneos de uma vida pública inexistente”.[2]

O convite à participação democrática na cultura encerra, de partida, uma dupla rejeição. A primeira, do produtor, comsiste na tese de que existiriam, no corpo social, grupos que não produziriam, ao menos conscientemente, cultura.[3] De modo passivo, viveriam como uma espécie de autômatos, e deveriam, pois, ser convocados à participação. A segunda consiste na rejeição do entendimento de que a relação cultural é mutuamente condicionante em uma sociedade capitalista, como veremos a seguir neste texto. Contudo, as razões, para o discurso vigente, desse automatismo não passa por sua produção, ou seja, pelos motivos materiais dessa alienação, nem pela análise do modo de produção social que implica essa correlação. As explicações são, no geral, de ordem idealista, uma vez que o primado explicativo e o sentido de suas afirmações parte das questões da consciência como agentes de transformação histórica.

E aqui começamos a desenredar o discurso que sustenta a mediação. Ao rejeitar os fatores condicionantes que abordamos, a mediação se compreende como necessária e imprescindível, contribuindo para a estruturação de um discurso que opera sob a ótica da informação/comunicação e da educação/saber.[4]

Da comunicação

O discurso que estamos analisando, quando entende sua necessidade como suprimento comunicacional se baseia no entendimento de que, em uma sociedade dita multicultural, de velocidade acelerada, faz-se necessária uma ponte entre as diversas manifestações culturais. A mediação se daria como campo de diálogo intercultural, e surgiria como elemento chave nos processos de intercâmbio cultural e compartilhamento de saberes, contribuindo para uma “dinamização e incremento das interações sociais”.

O sujeito contemporâneo, contudo, não reconhece e não se reconhece na produção cultural de seu tempo, qualquer que seja seu “grupo cultural”. Ele não encontra sentido histórico, posto que essa produção, dentro da lógica da mercadoria, não responde a urgências históricas, mas a demandas de mercado, para valorização do valor, em abastecer esse ou aquele nicho, de acordo com o estilo e conceito de vida que querem atender. Ora, é da natureza do capital constituir-se na negação do processo de trabalho. Na negação, portanto, de toda cultura do trabalho. Ao se apropriar dos meios e da gerência de produção, ele cria um sujeito fraturado, que não se reconhece no que produz, ceifado em sua subjetividade.[5] Logo, qualquer tipo de reintegração desse sujeito reificado a uma prática cultural, como um dado externo a ele, não se dá noutra ordem que não seja a da dominação e do fetiche. Ou seja, na medida em que as relações sociais, no capitalismo, constituem-se em sua forma aparente como relação entre coisas, e não entre pessoas, os sujeitos enxergam as mercadorias como dotadas “naturalmente” de valor, invertendo-se, por assim ser, o processo de objetivação social. Os objetos possuem então a possibilidade de nos sujeitar. Trata-se de mais uma mercadoria a lhe prover subjetividade. Uma mercadoria especial, contudo, bem mais perversa que as outras, uma vez que contribui para realizar um duplo processo de fetichização. A

“relação fetichista posta pelo capital alcançou (…) um grau de abstração ainda maior, na medida em que as coisas produzidas sob a forma mercadoria foram recobertas por imagens produzidas também sob a forma mercadoria: são essas imagens que medeiam, desde então, as relações sociais como uma realidade aparente compensatória que está à frente dos homens de maneira tão isolada como força alheia quanto as forças sociais nela inseridas”.[6]

O produto cultural irá fortalecer essa segunda camada de fetichização, posto que o que lhe cabe é fornecer esse universo imaginário que qualquer produto poderá utilizar. Para nos valermos das formulações de Guy Debord:

“a origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno revela a totalidade dessa perda: a abstração de todo trabalho particular e a abstração geral da produção como um todo se traduzem perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo se representa diante do mundo e lhe é superior. O espetáculo nada mais é que a linguagem comum dessa separação. O que liga os espectadores é apenas uma ligação irreversível com o próprio centro que os mantém isolados. O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado”.[7]

Desse modo, reunindo

“o separado, mas como separado”, “a cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular”.

O produto cultural, concebido como mercadoria e operacionalizado pelo constructo da mediação cultural, torna possível esse retorno do indivíduo, perdido em sua incompletude e abstração, para uma cultura que lhe é representação superior do mundo. Assim sendo, ela “é a mercadoria ideal, que obriga a compra de todas as outras”[8] e que realiza esse processo de controle ideológico. É sintomática a quantidade absurda de anúncios de grandes bancos relacionados com o universo cultural (e multicultural).

[Caro leitor, faça esse arriscado exercício, feche nossa revista e folheie a Veja, a Bravo, a Dasartes, por alguns segundos, para conferir esses anúncios.]

Desse modo, a ilusão de uma coexistência multicultural se fixa como subproduto simbólico da ideologia que sustenta as práticas de nosso modo produtivo. A mediação, ao invés de realizar esse diálogo, que como vimos é ilusório, presta serviços a uma reintegração “forçada” de grupos inteiros à cultura, contribuindo, em última instância, para a disseminação dos diversos universos imaginários – de preferência artísticos – que o capital pode produzir. O convite feito, portanto, é para um simulacro de cultura, uma vez que a lógica fundante de nosso sistema inviabiliza a existência real do multicultural, posto que, como vimos, a realidade do capital se dá na inviabilização das outras culturas (abstraindo os processos de produção delas).

Na contemporaneidade, todo o tempo do trabalhador (tempo livre ou de trabalho) é administrado pelo mercado. O consumo simbólico é regido também por esse modo de produção – de tal feita que o processo que transforma sujeitos ativos em objetos do processo social encontra o paroxismo. Desse modo, a produção cultural não surge obviamente desse sujeito fraturado. Ela se conforma, em nossos dias,[9] em mais uma atividade especializada do sistema.

E aqui, cabe mencionar que a extinção de certas categorias de pensamento, como erudito, popular e folclórico e, como vimos, do multicultural, é parte fundante deste processo. Pois a produção especializada abarca qualquer uma dessas antigas categorias, tratando-se de produzir, de forma especializada, cultura fetichizada para nós mesmos. De um simulacro da cultura à cultura do simulacro, a partir da qual, profissionalizada a cultura, estabelece-se a era regida pela figura-fetiche do autor. Essa divisão da produção simbólica implica uma cadeia produtiva e de circulação da mercadoria, que, como qualquer outra, irá trabalhar com os mesmos preceitos do marketing moderno, de criação de demanda. Ou, em termos mais próximos a nós: de formação de público. Nessa cadeia de circulação, está inserida a paradoxal mediação.

Do saber

A mediação ainda compreende o problema do descompasso entre sujeitos e cultura dentro da chave do saber. Partindo das mesmas premissas, esse desajuste se daria pela falta de conhecimento dos códigos culturais necessários para o “deciframento” e a fruição dos bens produzidos. Necessitar-se-ia, pois, serem trabalhados pelo sistema educativo (seja formal, informal ou não-formal). A produção teórica sobre mediação cultural se conforma, em grande medida, a partir dessas necessidades. É símbolo dessa perspectiva o programa “Cultura é currículo” do governo do estado de São Paulo, que povoa as exposições de arte de alunos da rede pública, rendendo às catracas números significativos.[10]

A estruturação do discurso nessa ordem dá à mediação a possibilidade de compartilhar do mesmo processo de naturalização que todo o sistema educativo possui.

“Dentre as soluções historicamente conhecidas quanto ao problema da transmissão do poder e dos privilégios, sem dúvida a mais dissimulada (…) é aquela veiculada pelo sistema de ensino ao contribuir para a reprodução da estrutura das relações de classe dissimulando, sob as aparências da neutralidade, o cumprimento dessa função”.[11]

Ao integrar-se ao constructo educativo, a mediação cultural se coloca como necessidade – e de outra forma não poderia, uma vez que esse constructo se efetiva nessa significação. Ele ainda se quer imprescindível na compreensão e na participação da sociedade contemporânea.

A cultura produzida pelo capital, qualquer que seja ela, almeja se postular como um dever saber. O currículo se constitui como um panteão de saberes que devem ser trabalhados pela educação. Postula-se como consenso, pretende se “deshistoricizar”, para se tornar parte de um “patrimônio cultural concebido como uma propriedade indivisa do conjunto da ‘sociedade’”.[12] Por isso mesmo pode se efetivar como um dever saber – operação essencial à natureza da educação conservadora. No oposto do que se constituem as teorias pedagógicas progressistas, que centram seus esforços no reconhecimento do sujeito enquanto ser histórico. A cultura passaria, então, a fazer parte dessa necessidade. Do ponto de vista do poder: deve-se conhecer os bens culturais produzidos, posto que patrimônios culturais da sociedade, além dos métodos de possuí-los, para, desse modo, constituirmos nossa subjetividade. Assim, o arbitrário – criado e constituído pelo poder hegemônico – se transfigura em necessidade social, realizando, mais uma vez, a velha e conhecida frase de Antonio Gramsci, segundo a qual “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”.

Ao constatar o descompasso, tanto de produção como de recepção, entre sujeitos e cultura, a mediação cultural credita esse desencontro, na chave exposta, a um “déficit” educacional e, nesse sentido, trabalha para a distribuição das possibilidades de fruição e criação de cultura. Ao se colocar o problema nos termos de uma concentração de cultura e saber, induz-se – até parte da crítica de esquerda – a uma saída que passe pelo terreno da distribuição (onde se encontra o discurso da inclusão educacional). Noutros termos, aponta-se a saída pela via da circulação, enquanto a matriz geradora desse descompasso se encontra na produção de cultura e saber (e do fetichismo de origem dessa produção). Portanto, não se resolve o problema possibilitando o acesso à cultura produzida enquanto forma-mercadoria, mas somente ao se questionar a própria condição histórica de produção da cultura a ela submetida. Ao querer “democratizar” a cultura, ao trabalhar por essa “inclusão”, o que se realiza, em verdade, é uma tripla naturalização: desse sentimento de falta (de cultura), dessa necessidade, e da própria cultura fetichizada que é produzida, transformada em patrimônio cultural.

Essa naturalização não é “senão a interiorização do arbitrário cultural”.[13] A educação, assim sendo, “tem como efeito, pela inculcação do arbitrário, dissimular cada vez mais completamente o arbitrário da inculcação”.[14] Pode-se criar, assim, por meio dessa naturalização realizada pela educação, um precioso aparato fetichista.

“Por ser (…) a cultura (de uma classe ou de uma época) tornada natureza, é que o julgamento do gosto (e seu acompanhamento de prazer estético) pode se tornar uma experiência subjetiva, vivenciada como livre e, até mesmo, como conquistada contra a cultura comum. (…) Para que a cultura desempenhe sua função de encantamento, convém e basta que passem despercebidas as condições históricas e sociais que tornam possíveis não só a plena posse da cultura – segunda natureza em que a sociedade reconhece a excelência humana e que é vivida como privilégio da natureza –, mas também o desapossamento cultural”.[15]

Com isso, enfeitiçado pela possibilidade e pelo consumo do bem cultural, podemos nos reconhecer como participantes da cultura – como pessoas cultas – e, ao mesmo tempo, nos diferirmos daqueles que não participam – como pessoas incultas. Desloca-se a questão, de um problema de base, intrínseco ao modo de produção de uma sociedade de classes, para um problema meramente educacional. A mediação cultural, desse modo, atua como mais um realizador dessa estrutura. Sujeição do sujeito: ao fazer existir um processo educativo, faz-se existir a compreensão de que se deve existir esse processo educativo. Vê-se aí a filigrana da dominação.

Se concordarmos com essa formulação, cabe dizer que boa parte da teoria sobre mediação e arte/educação, que procura refletir sobre seu modus operandi e chega até a evocar Paulo Freire – numa leitura que só pode ser considerada espúria de sua teoria –, não alcança relevância histórica concreta ao excluir a problematização da própria existência e pertinência de seu objeto de análise. Assim sendo, quando tais teorias postulam sobre a abordagem dos mediadores, não percebem que o problema reside na própria existência da abordagem, e mesmo antes, na própria presença deles em cena. Ao querer suscitar reflexões, instigar ou questionar o consumidor cultural, o mediador legitima o objeto “mediado” enquanto objeto digno de suscitar reflexões, ou seja, de ser mediado. Portanto, a própria existência dessa instância educativa contribui para a necessidade mesma dessa instância, corroborando o processo de “naturalização” da cultura, que se constitui, em nossos dias, como forma-mercadoria, e inserindo-se em seu processo tautológico.

O sujeito fraturado, que apresentamos anteriormente, necessitaria, pois, ser educado a produzir cultura e habilitado a consumir cultura. Esta seria mais uma das competências[16] a ser desenvolvida em nossos tempos pelo processo educativo para estarmos aptos a conviver, dialogar e interagir com o universo cultural criado pelo capital. Nesse sentido, são criadas, inclusive, ilusões mistificadoras de mobilidade social, como na crença de Ana Mae Barbosa, de que o

“acesso ao código erudito, que é o código do poder, é essencial para a ascensão de classe”.[17]

Medio, monitoro, valorizo

Há ainda outro papel da mediação cultural dentro da economia política das artes a ser discutido. Este papel explica, em parte, a peculiaridade das artes visuais frente a outras manifestações artísticas. Por que a música ou a dança contemporânea, com seus públicos ínfimos, não conseguem constituir um sistema organizado de mediação cultural? Não obstante as condições materiais do espaço expositivo que favorecem essa atuação, bem como o desenvolvimento histórico das preocupações pedagógicas desde o museu moderno, o que se verifica no sistema das artes visuais é a imprescindibilidade do setor educativo na configuração da exposição contemporânea. Não há exposição de arte que seja pensada sem a criação desse setor porque ele é fundamental, num primeiro momento, para o aumento de público do evento, e isso todos concordamos pragmaticamente. Mas há algo que vai além.

A mediação cultural além de atuar na reprodução e na legitimação da ordem, se efetivando como sofisticado mecanismo de sustentação ideológica do capital, contribui também, ao atuar no contato direto com o público consumidor, no processo de valorização do valor. Função inexorável do capital, de obter uma valorização do bem que possui para além de tempo social de trabalho que o constituiu, e para além da simples definição de um preço que extrapole as taxas de lucro médio. As obras de arte, constituídas enquanto mercadorias possuem a característica de, durante o processo de sua circulação, se valorizar nestes termos.

Sendo assim, a formação de público é ao mesmo tempo criação de demanda e valorização do valor. E aí se percebe claramente a distinção atual entre as artes. Para o capital, a produção artística é, sem ilusões poéticas, produção de tesouros e de experiências colecionáveis – para estar de acordo com as diretrizes atuais do mercado de luxo –, como objeto em si, ou como fornecedor de imagens para o processo de fetichização da mercadoria. É valor, puro e simples, e sua valorização, tão abstrata quanto à dos produtos do mercado financeiro, passa necessariamente pelo convencimento de sua importância e pela construção de sua realidade.

A dança ou a música contemporânea, nesse sentido, valem (ainda) pouco para o capital, por isso não possuem as somas vultosas de investimento em mediação cultural. Quando se investe na estrutura educativa de uma exposição, investe-se, em verdade, na realidade cultural das obras ali expostas, na “naturalização” da cultura fetichizada (em última instância, no convencimento do público). Portanto investe-se na criação de condições para valorização do tesouro ali apresentado. A mediação representa, desse modo, uma função estratégica para o capital que trabalha com cultura. Ela atua, por assim dizer, como um marketing direto de reconhecimento social da mercadoria exposta. Pois é da essência do processo de valoração o reconhecimento social da própria mercadoria e da possibilidade de valoração que ela possui. Quanto mais reconhecida socialmente, mais valorizada será, uma vez que diminui sua abstração e imaterialidade e aumenta uma possível demanda frente à oferta sempre monopolista do produto de arte. O tesouro precisa ser socialmente aceito como tal para ser tesouro.

Assim sendo, a mediação cultural une, em uma só operação, o auxílio à criação do tesouro, seu reconhecimento e sua valoração. Evidentemente, ela não atua sozinha nesse processo, existem muitas outras instâncias que corroboram na implantação da arte como um sistema de criação de valor. Contudo, ela pode ser considerada a linha de frente, a que encarna e representa o caráter pedagógico da exposição.

Por todas essas funções apresentadas até aqui, acreditamos que foi possível dar visibilidade à importância produtiva e ao sentido histórico da mediação cultural. Uma atividade tautológica, que de uma só feita, opera no processo de naturalização da cultura, na sustentação ideológica da possibilidade do multicultural, na construção e valoração do valor.

Conquanto, ela atua ainda – o que se reflete no nome comumente dado a essa atividade profissional – na monitoração do espaço expositivo, contribuindo para a vigilância mesma dos tesouros expostos e dos próprios frequentadores. Feito guardas patrimoniais, os monitores, toda uma leva de estudantes de arte incute em si, e como normalidade, a tarefa de vigiar e punir àqueles que visitam as exposições de mercadorias.

Essa função mais comezinha se articula com as outras e culmina em um itinerário de tarefas e responsabilidades importantes para o sistema das artes. Entretanto, os profissionais que as executam possuem vínculos por demais tênues (flexíveis ou precarizados, como se queira) com as instituições que os empregam. Essa própria condição pode explicar em parte a dedicação desses profissionais ao trabalho, que vem a ser a porta de entrada de muitos jovens artistas e educadores a esse sistema. Pois como em qualquer outro ramo produtivo, ascenderão aos cargos de comando aqueles trabalhadores mais dedicados e condicionados à estrutura de poder.

No entanto, a precarização do trabalho não justifica por completo a situação de espectadores de sua própria condição por parte desses profissionais. Há ainda uma dominação discursiva que alça tais funções a valores nobres e que sustenta a crença no papel civilizador da arte e da educação – dogma este que, de resto, fundamenta todo o processo da mediação cultural.

O vínculo empregatício tênue, contudo, possui uma dupla condição. Ao mesmo tempo em que domina, pela insegurança financeira, os trabalhadores, pode permitir, por essa mesma falta de laços, uma postura que viabilize a construção coletiva de um contra-discurso e de uma prática anti-sistêmica. Ligados tão fragilmente ao sistema das artes, toda uma leva de jovens profissionais terão a possibilidade de, compreendendo as reais funções exercidas na mediação cultural, assumir uma posição crítica, negativa e potencialmente transformadora.

Ainda é incipiente o debate sobre as possibilidades e impossibilidades de ação dessa categoria profissional. Ou se o propósito crítico e transformador que pretendemos não exija mesmo a extinção dessa categoria. Há, neste âmbito, muitas reflexões a serem realizadas. No entanto, espera-se, por hora, mais um movimento do adversário, uma vez que os modelos descritos neste ensaio são a todo tempo reconfigurados e aprimorados. Cabe-nos, contudo, batalhar por esse contra-discurso.

 


 

Notas
[1] – LEIBNIZ, apud BOURDIEU, Pierre e Darbel, Alain, O Amor Pela Arte: os museus de arte na Europa e seu público, São Paulo, EDUSP, Porto Alegre, Zouk, 2007. P.112.

[2] – ARANTES, Otília, O Lugar da Arquitetura Depois dos Modernos, São Paulo: EDUSP, 2000. P. 241.

[3] – Não se trata de grupos étnicos, nem minorias raciais, acerca das quais o multiculturalismo aborda. Estamos tratando de qualquer grupo, dentro mesmo desses outros grupos, de minorias ou não, que por algum motivo não se estabelece como produtor cultural.

[4] – Evidentemente, essa divisão se faz para a didática de nosso texto, pois, em realidade, os discursos se complementam ou se confundem, bem como suas fundamentações. Não obstante, o desenvolvimento da argumentação dos autores pode pender para uma ou outra chave. Situam-se, de modo geral, como alicerces dos discursos que pretendemos analisar, os recentes estudos de mediação cultural franceses, de autoras como Jean DAVALLON, L’exposition a l’oeuvre: Stratégies de communication et mediation symbolique, Paris: Harmattan, 2000; Elisabeth CAILLET, Médiateurs pour l’art contemporain. Paris: La documentation Française, 2000; Bernard LAMIZET, La médiation culturelle. Paris: Harmattan, 1998; Jean CAUNE, Pour une éthique de la médiation: le sens des pratiques culturelles. Saint-Martin-d’Hères (Isère): Presses Universitaires de Grenoble (PUG), 1999. No Brasil, temos como principais formuladoras do discurso vigente Ana Mae Barbosa, referência da área, com inúmeros livros escritos e Rejane Coutinho. Ambas publicaram o recente livro Arte/Educação, Como Mediação Cultural e Social, São Paulo: Editora UNESP, 2009. Organizado por elas, com textos brasileiros e com a tradução de alguns autores franceses que citamos acima. As autoras desenvolvem a sintomática tese já no próprio título, da arte/educação como mediação cultural e social.

[5] – “O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria. (…) o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece (…) como desefetivação do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento, como alienação”. MARX, Karl, Manuscritos Econômicofilosóficos, São Paulo: Boitempo, 2004. P. 80.

[6] – KURZ, Robert, Prefácio à edição brasileira do livro de JAPPE, Anselm, Guy Debord¸ Vozes, Petrópolis, 1999.

[7] – DEBORD, Guy, A Sociedade do Espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P. 23.

[8] – DEBORD, Guy, e os Situacionistas, apud ARANTES, Otília, “A virada ‘cultural’ no sistema das Artes”. in Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, número 6, São Paulo: Boitempo, 2006. Otília desenvolve, nesse texto, um raciocínio afiado sobre a centralidade da cultura na atual reprodução do mundo capitalista.

[9] – Para uma arqueologia da constituição do campo autônomo de produção de bens simbólicos ver BOURDIEU, Pierre, A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo: Perspectiva, 2004, mais especificamente o capítulo “O mercado de bens simbólicos”.

[10] – Uma de suas diretrizes é: “Democratizar o acesso de professores e alunos da rede pública estadual a equipamentos, bens e produções culturais que constituem patrimônio cultural da sociedade, tendo em vista uma formação plural e a inserção social” in <http://culturaecurriculo.fde.sp.gov.br/programa.aspx>. [Grifos do autor].

[11] – BOURDIEU, Pierre, A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo: Perspectiva, 2004 P. 296.

[12] – Idem. P. 297.

[13] – BOURDIEU, Pierre e Darbel, Alain, O Amor Pela Arte: os museus de arte na Europa e seu público, São Paulo, EDUSP, Porto Alegre, Zouk, 2007. P. 164.

[14] – Idem. P. 164

[15] – Ibidem. P. 165.

[16] – Para uma análise de como a pedagogia das competências, que permeia toda a nossa LDB, se constitui como valor-de-troca ver MORETTI, Vanessa, “A teoria do valor em Marx e a educação: um olhar sobre a pedagogia das competências” in PARO, Vitor (org.), A Teoria do Valor em Marx e a Educação, São Paulo: Cortez, 2006.

[17] – BARBOSA, Ana Mae, Tópicos Utópicos, Belo Horizonte: C/Arte, 1998. P. 15.


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