Virada Cultural: a cultura entre o deserto e a enchente

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Na ausência de uma crítica e, sobretudo, de uma crítica materialista ao fenômeno das chamadas Viradas Culturais – que surgiram no Brasil em 2004 com as comemorações dos 450 anos da cidade e agora se espalham pelo país como estratégia hegemônica para a cultura – todas as lutas que vem sendo travadas pelos movimentos de artistas e produtores por políticas públicas para a cultura tendem a ficar ainda mais fragilizadas. É necessário colocar na ordem do dia essa pauta delicada e rever, de imediato, o aparato conceitual que ela evoca.

O primeiro problema que se impõe é o da unanimidade aparente. A grande mídia elabora massivamente elogios ao evento, criticando-o apenas em questões administrativas ou infra-estruturais, de dimensão empírica. Não gratuitamente, o discurso da “democratização do acesso à cultura” toma sua notória forma de estribilho insistente e infalível – espécie de jingle publicitário, que, sem muito esforço, deita abaixo qualquer iniciativa de crítica ou de análise objetiva do evento.

No âmbito da cultura, o discurso hegemônico considera o “acesso aos bens culturais” como a única participação possível para a classe destituída dos meios de produção no espetáculo. No contexto da sociedade cindida em classes, essa participação só pode existir enquanto consumo. Nesse processo de “democratização do acesso”, os meios de produção da cultura permanecem intocáveis nas mãos da classe dominante, e a fruição das obras envolvidas na Virada ocorre inevitavelmente como subproduto da circulação das mercadorias, dos bens culturais enquanto mercadorias. A monumentalidade característica do evento – instrumento de manifestação do poder econômico e estatal sobre a cultura – envolve todas as produções que dele participam, de forma que todas as linguagens e seus conteúdos intrínsecos são submetidos a um modelo unificado de fruição. O artista que, com sua produção, se submete a tal evento é sujeitado inevitavelmente a uma “estrutura de sentimento” (Raymond Williams) elaborada a partir da “embalagem”.

Deste ponto de vista, a Virada Cultural contradiz concretamente seus discursos, de pluralidade e democratização, e se aproxima mais de um equivalente geral abstrato de todas as produções contidas. Assim, a população “vai à Virada”, pois esta equivale e ao mesmo tempo supera o conjunto de produções artísticas que contém. A Virada é uma visão de mundo que se objetivou. Acumulação e circulação a ela se referem concretamente:

A circulação humana considerada como um consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente à distração de ir ver o que se tornou banal. A ordenação econômica da freqüentação de lugares diferentes é já por si mesma a garantia da sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço. (Guy Debord).

Talvez seja útil tentar uma aproximação entre cultura e turismo, no sentido proposto por Debord, para estudar o fenômeno da Virada – que a cada ano cresce e se espalha por outras cidades e regiões como modelo hegemônico de cultura.

A Virada fundamenta-se, sobretudo, na circulação humana indiscriminada: a população é lançada às ruas para consumir cultura e, por outro lado, é criminalizada pelo poder estatal quando seu comportamento não corresponde à fruição administrada. Se os moradores de rua do centro de São Paulo são cotidianamente violentados e retirados a força da região, a operação de higiene social operada pela Polícia Militar nos dias que antecedem a Virada se diferencia pelo rigor estratégico e pela intensidade. Na dinâmica que une excesso e privação, vadiagem e balbúrdia ganham um sentido ambivalente: por um lado justificam os problemas infra-estruturais do evento, enquanto, por outro, reiteram sua necessidade nos termos de uma ação civilizatória frente ao caos de uma cidade social e culturalmente devastada.

O discurso da grande mídia não é diferente: as Viradas seriam um belíssimo e harmonioso acontecimento da cultura com pequenos lapsos de barbárie – da parte da população, é claro. Enfrentamentos com a polícia, brigas, assaltos (e inclusive um assassinato que ocorreu durante o evento de 2010), são todos tratados como ruídos do acaso, que poderiam igualmente acontecer em situações fora do evento. Tais discursos passam então a justificar aquilo que acontece na Virada por meio do que acontece em outros períodos – garantindo sua equivalência e posicionando-se de maneira confortável no discurso aparentemente neutro da inexorabilidade do acaso urbano.

Parte da mesma dinâmica de excesso e privação é a espera de horas na fila para entrar no Teatro Municipal pela primeira vez (porque neste dia a entrada é gratuita) e assistir uma apresentação. É apenas um exemplo paradigmático do sucateamento geral da cultura – cotidianamente reposto, pois a Virada é um monumento erigido de escassez. Ela é, sobretudo, apoiada na ausência de discussão pública sobre as políticas estatais para a cultura; situação insustentável, do ponto de vista dos movimentos de trabalhadores da cultura, contra a qual é premente a insurgência, rompendo o consenso geral (aparente) de conformismo e adesão.

A cada ano a Virada Cultural na cidade de São Paulo cresce substancialmente em número de participantes e em investimentos da gestão municipal. No entanto, os programas públicos – como, por exemplo, as leis de fomento ao Teatro e à Dança, o Programa VAI, o Programa Vocacional – têm sofrido desfalques significativos, alguns deles inclusive ilegais, como é o caso da Lei de Fomento ao Teatro. No último ano (2010), a gestão do senhor Kassab chegou a injetar no orçamento da Virada Cultural cerca de 2,8 mi remanejados das obras de revitalização da praça Roosevelt. Cabe lembrar que o ano começou com vários cortes no orçamento da Secretaria Municipal de Cultura (cortes de até 100%, como é o caso da Mostra de Teatro de Rua de São Paulo), e com manifestações de artistas e produtores em oposição a tais disparates. O que fica claro é o seguinte: todos os programas que foram implantados através da luta dos trabalhadores da cultura organizados estão sofrendo ataques, enquanto, inversamente, o projeto de cultura que dá mais visibilidade (o ano eleitoral!) à Prefeitura recebe recursos extras.

Todavia, levando-se também em conta obras como a do Teatro da Dança e da Praça das Artes, a Virada não representa o desmantelamento ou descaso do poder público em relação à formação de uma política cultural estatal continuada e de fôlego. Ao contrário do que se poderia pensar, ela é o indício da permanência e maturação de um projeto político-social que reconhece nas artes e na cultura em geral a definitiva pedra angular sobre a qual finalmente podem ser harmoniosamente aliados os interesses do poder público, do mercado imobiliário, da elite financeira e intelectual, da mídia… e até mesmo das massas famélicas por entretenimento e arte (seguindo a asserção situacionista, “Cada qual segundo suas falsas necessidades”). Como parte de tal política cultural, apesar de efêmera (e também por isso), a Virada Cultural cumpre a função de ação simbólica exemplar: uma espécie de ensaio contínuo e regular para aquilo que, uma vez generalizada a ordem do espetáculo na sociedade, determina-se constantemente para a cultura e cidade como um todo. Miragem de um oásis, ela é a promessa continuamente reavivada da chegada de um paraíso; é, inversamente, ao mesmo tempo, seu definitivo sepultamento na linha abstrata e inalcançável do horizonte.


 


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