Resenha – Tiqqun, Isto não é um programa

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* TIQQUN, Isto não é um programa, publicado no Brasil em 2014 por Dazibao e originalmente na França, em 2006, por Éditions VLCP. A seguir, nas citações, os números entre parênteses se referem à edição brasileira.

“É um princípio óbvio, que foi frequentemente mal interpretado: a crítica interna ao movimento operário deve exprimir-se sempre como luta externa contra o inimigo de classe; e, portanto, a crítica interna do marxismo deve exprimir-se antes de tudo como luta contra o pensamento burguês. Assim, hoje, a crítica destrutiva de todas as ideologias neocapitalistas deve ser o necessário ponto de partida”.[i]

Armadilhas

Uma armadilha: afinal, escrever sobre/com/contra um texto não é repetir, em outros termos, os limites do texto sobre o qual se escreve? Por exemplos: tal capítulo é bom, registre-se; tal capítulo está equivocado, corrija-se. No primeiro caso, valeria mais a pena ao leitor o contato direto com o livro comentado; no segundo, valeria a pena ao resenhista escrever o que ele pensa ser mais correto. Na forma resenha/comentário/crítica, o resultado parece ser sempre outro texto, que eventualmente será objeto de um novo texto, numa cadeia – cadeia – de palavrórios: a crítica da crítica da crítica da crítica etc.

Tenho diante de mim um texto: panfleto? Dossiê? Coletânea de postagens de blog? Sei, de início, o que ele não é: um programa. Será, porém, que determinar a natureza do texto é essencial para sua leitura? Talvez aqui não seja o caso de partir da forma. Os nomes das coisas, como o próprio texto parece demonstrar, não são tão importantes quanto as coisas mesmas. Ou melhor, não as “coisas mesmas”, mas os fatos e acontecimentos. Há, talvez, uma crítica a nomes (tomados como conceitos: programa e organização, por exemplo); e há, em contrapartida, apontamentos: isso aqui, aquilo ali, etc., como fazia o antigo dedo de Crátilo, que somente apontava os acontecimentos, porque o nomear já perdia seu objeto no tempo. Não que os nomes não sejam manejados, mas o são com moderação. Mesmo “TIQQUN”, a quem se poderia atribuir a autoria do texto, não designa um autor, autora ou conjunto de autores – segundo a intenção dos próprios.[ii] Digamos, provisoriamente, ser uma voz (poderíamos dizer um conjunto de vozes). Mas um texto não escapa sempre das intenções a partir das quais foi redigido? Afinal, se uma voz pudesse produzir apenas os efeitos pretendidos, o mundo se resolveria com palavras, num passe de mágica. Ainda assim, muito se escreve e fala, talvez com fé na afirmação de que “sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”.

TIQQUN, no entanto, recusa Lênin. Em Isto não é um programa encontramos essa voz que tem suas alianças e suas inimizades, suas proposições e suas negações. Qualquer leninismo está no lado do criticável. “Organização” está sempre sobrando onde as pessoas efetivamente se organizam, é um restolho, afirma uma voz semelhante num texto posterior,[iii] reforçando o acontecimento em desfavor do seu nome. Nesse sentido, podemos dizer que essa voz convoca à ação direta e que talvez o melhor modo de avaliá-la seja mediante as ações que dela decorreram. No entanto, isso, caso fosse realizável (sabe-se lá como), faria do texto um programa. Por outro lado, fazer uma leitura meramente conceitual de suas propostas – o que será, entretanto, feito, em alguma medida – parece descabido, já que o texto nem se propõe a ser um tratado de ação direta. Assim, se o texto parece escapar de um embate teórico sobre revolução e/ou insurreição, também não se apresentam meios factuais de avaliação: serão os recentes levantes contra as reformas trabalhistas na França casos concretos que ilustram o que nos é apresentado como ação exemplar? Teriam, antes, as insurreições nos banlieus cumprido tal função?[iv] Esperar do texto frutos mais ou menos imediatos: talvez não seja esse o caminho. Com que critérios então escrever sobre Isto não é um programa?

Não escaparei dessas armadilhas. Como hipótese, arrisco dizer que são relativas aos lugares onde circulam textos como esse – na França, na academia, em coletivos esclarecidos –, que fazem com que ele produza tudo menos seus efeitos pretendidos. Se for o caso, Isto não é um programa ao menos é um texto ciente disso:

Assim, construir o Partido não se coloca mais em termos de organização, mas em termos de circulação. Isso significa que, se ainda há um “problema de organização”, este é o da organização da circulação dentro do Partido. Pois somente a intensificação e a elaboração de encontros entre nós podem contribuir para o processo de polarização ética e para a construção do Partido (p. 13).

França

“Nós, que operamos provisoriamente na França, não levamos vida fácil”, afirma a voz. Nós, que operamos no Brasil, ao ler uma frase como essa não deixamos de lembrar daquela outra: “classe média sofre”. Sim, a vida na França não é fácil, o Estado é onipresente, ele é a salvaguarda do conservadorismo, com suas escolas e hospitais que reproduzem uma vida difícil de ser levada. Na França, prossegue a voz, em toda parte o mercado é atacado em nome do Estado, o que não é nada mais do que uma conciliação integradora ao sistema, uma ilusão, um engodo. Não leva muitas páginas para a França reaparecer no centro do mundo, ainda que mediante um aspecto negativo: essa louvação do Estado, que aplacou os movimentos de 68, é maior lá que em qualquer outro lugar, fazendo do país o epicentro mundial do cidadanismo.

“Cidadanismo” é o nome do inimigo. Trata-se de uma conciliação, uma integração na ordem de coisas existente, como se essa ordem de coisas fosse a maior conquista, a maior realização humana possível – socialdemocracia, no caso francês. A crítica ao cidadanismo retoma uma afirmação de Tronti, muito mais recente que aquela com a qual abri o texto: o movimento operário não foi derrotado pelo capitalismo, mas pela democracia.[v] No caso do italiano, bem compreendido, capitalismo e democracia são no fundo o mesmo; em Isto não é um programa também o são, mas com a implicação de que algo precisa ser urgentemente reformulado. A identificação do cidadanismo como entrave às lutas é o primeiro passo de uma proposta de reelaboração das próprias lutas, de uma “redefinição da conflituosidade histórica”. Redefinição aqui tem um sentido inaugural, reinaugural:

De novo a experimentação às cegas (…) de novo a ação direta (…) de novo o desejo e o plano de consistência (…) de novo isso, a autonomia, o punk, a orgia, a revolta, mas sob um prisma inédito, amadurecido, pensado, desembaraçado das esquivas do novo (p. 8).

Sim, de novo a França com seus recomeços, desde, ao menos, o “renascimento” da filosofia com o adequadamente nomeado René Descartes.[vi] Recorrências à parte, a redefinição é necessária porque a definição – a luta de classes – “não funciona mais. Ela condena à paralisia, à má-fé e à falação”. Caí na armadilha, como havia prometido. Prossegue a voz:

A conflituosidade histórica não opõe mais dois grandes aglomerados molares, duas classes, os explorados e os exploradores, os dominantes e os dominados, os dirigentes e os executantes, entre os quais, a cada caso, seria possível traçar uma separação (p. 11).

O traço divisor identificado por TIQQUN não passa mais na sociedade, entre classes sociais,[vii] mas em cada um, “entre o que faz de alguém um cidadão, seus predicados, e o restante”, como se, esquizofrenicamente, carregássemos o inimigo e dele pudéssemos/precisássemos nos depurar. A vantagem dessa repartição é que um processo revolucionário, agora, pode ser exercido de qualquer ponto, “a partir de qualquer situação singular”. Isso porque para toda situação singular, por fim, “existe um plano de consistência que lhes é comum, o da subversão anti-imperial”. Curiosamente, essa nova qualidade da conflituosidade histórica é muito similar àquela apresentada por Hardt e Negri em Império, quando afirmam que, hoje, “cada luta, por intermédio de condições locais firmemente arraigadas, salta imediatamente para o nível global e ataca a constituição imperial em sua generalidade”.[viii] Curioso porque, como logo veremos, há uma crítica forte a Antonio Negri e seus seguidores em Isto não é um programa. Por outro lado, esse autor compartilha com a voz, ainda que sob perspectivas muito diversas, um repertório filosófico dito “pós-estruturalista”, especificamente no que diz respeito a Deleuze, Guattari e Foucault, o que se revela claramente na alusão ao “plano de consistência”.[ix]

Des/organização

Esse plano de consistência é nomeado pela voz de “Partido Imaginário”. A escolha do termo é feita “para que em seu próprio nome fique exposto o artifício dessa representação nominal e, a fortiori, política. Como todo plano de consistência, o Partido Imaginário está, ao mesmo tempo, já atuando e sendo constituído” (p. 12). Novamente, se trocássemos “Partido Imaginário” por “multidão”, no sentido dado por Negri, não teríamos nenhuma alteração de sentido nessa passagem. As semelhanças, aliás, se multiplicam até o momento em que TIQQUN decide fazer a refutação do negri-ismo – refutação necessária justamente por essa proximidade e que vai ocupar uma boa fração do texto.

Uma primeira pista para a distância vem na apreensão do Partido. Se para Negri a questão da organização, do modo como se apropria no leninismo, é inescapável, em Isto é não é um programa “organização” leva a erro, falha, paralisia. O Partido, afirma-se, não opera mais como organização total (integrando as partes num todo e suprimindo suas diferenças), mas como intensificação das diferenças e de suas relações; propõe-se, em consonância com aquela linha divisória retraçada, “elaborar entre nós a guerra civil da maneira mais sutil possível”. Poderíamos pensar, talvez ingenuamente, que é preciso elaborar entre nós uma articulação, a menos sutil possível; mas TIQQUN nos adverte que não. Como vimos, construir o Partido não se coloca mais em termos de organização. É preciso traçar a linha entre nós, não ao nosso redor. Uma das primeiras linhas é a que vai entre TIQQUN e Negri ou o que eles chamam de negri-ismo:

Ninguém tem o que refutar no negri-ismo, os fatos se encarregam disso. (…) A vocação do negri-ismo, em última instância, é fornecer ao partido dos cidadãos sua mais sofisticada ideologia (…) o socialismo cibernético” (p. 132).

Essa é outra armadilha, mais pessoal, que o texto sobre o texto me apresenta. Isso porque fiz uma pesquisa de mestrado sobre a obra de Negri, especificamente sobre o conceito de organização.[x] Defendê-lo? Juntar-me no ataque? Qual o propósito disso, ou melhor, onde está o inimigo externo? Decidi fazer um acareamento.

Negri – “esse esquizofrênico (…), homem volúvel de nascença” (p. 148), portanto, atravessado pela linha divisória que separa o revolucionário do cidadão –, é apresentado como um sujeito reformista, muito dentro do jogo. Sua adesão ao ATTAC (Associação pela taxação de transições financeiras e pela ação cidadã) revela o quadro de seu pensamento: cidadania, direitos, Estado. Nada de revolução. O movimento antiglobalização, apoiado em sua obra, revelaria em suas demandas esse enquadramento: pedido de renda de cidadania, de legalização de imigrantes, de “direito à criatividade, especialmente se esta for realizada por computador”. Trata-se, grosso modo, de um ponto de vista não distinto ao Império, mas integrado a ele, de forma que “o negri-ismo exprime efetivamente um antagonismo, mas um antagonismo dentro da classe dos gestores, entre sua parte progressista e sua parte conservadora” (p. 134).

Assim como Slavoj Zizek já havia apontado o reformismo na formulação daquelas demandas, o aspecto de “quadro de gestores” já foi apontado numa crítica muito feroz feita mais próxima de nós por Atílio Boron.[xi] TIQQUN insiste nesse ponto, inconciliável com sua perspectiva por dois motivos. O primeiro vem da insistência de Negri na biopolítica, ao que a voz de TIQQUN indica dois problemas: em primeiro lugar, apoia-se equivocadamente numa “distinção positiva entre biopoder e biopolítica invocando uma inencontrável ortodoxia foucaultiana”. É verdade, precisamos admitir, que a distinção é muito mais da leitura de Negri que do texto de Foucault. Quando à ortodoxia, porém, Negri já afirmava sobre o marxismo: às favas com a ortodoxia. Em segundo lugar, em Isto não é um programa encontramos um importante rastreio do conceito de biopolítica que remonta suas origens a uma tradição conservadora, com Aron Starobinski e André Birre, calcada em um discurso sobre a natureza humana e próxima ao nazismo. Tal tradição, pior ainda, já teria sido lamentada em 1967 por Georges Heinen, que teria previsto: “É possível que a biopolítica se torne o instrumento da revolta dos executivos” (p. 129), retomando o antagonismo entre a classe dos gestores. No caso de Negri, a biopolítica não é nazista, ainda que sua origem conceitual não possa ser apagada, mas é totalizadora, num sentido eclesiástico de oikonomia, ou seja, administração total, da integração social pacificada e produtiva – ou seja, cidadanismo.

Ora, há, de fato, totalização na biopolítica de Negri: todo o globo e toda a vida são abarcados pelo capital. A produtividade também é total: não somente todo espaço, mas todo tempo é submetido ao regime de produção. Quanto à pacificação, não é possível concordar: não há acomodação do trabalho nesse “tecido totalmente integrado”, mas antes revolta e desejo, um desejo excessivo e transbordante – outros termos, aliás, coincidentes entre Negri e TIQQUN. É a partir da diferença entre o manejo dos termos que podemos encontrar o segundo motivo da incompatibilidade entre as perspectivas. Em Negri, desejo e revolta são objeto de organização, a partir de uma apropriação muito particular do leninismo; para TIQQUN, como já vimos, leninismo e organização são cartas fora do baralho. O Lênin de Negri não é o da vanguarda e do partido como modelos prontos; antes, é o da correspondência entre a composição técnica do trabalho e a composição política das lutas. Luta-se como se trabalha: se na Rússia havia uma vanguarda de trabalhadores, deveria haver também uma vanguarda revolucionária. Daí toda a fenomenologia das novas formas de trabalho em Negri: saber qual forma de trabalho é hegemônica leva à forma da luta. E é aí que entram biopolítica e desejo. O trabalho mobiliza totalmente os sujeitos na produção, isso é, seu corpo, seu pensamento, seus afetos, seus valores; mobiliza toda sua força vital, isso é, seu desejo. E o faz colocando os sujeitos não mais em linha, mas em redes, muitas vezes globais. Produz-se comunicativamente e produz-se comunicação; produz-se biopoliticamente, e produz-se bios. O aspecto de gerência deste cenário está no fato de que, nessa produção de ponta, hegemônica, também o trabalho mental é realizado pela classe trabalhadora (enquanto supostamente, na definição que não mais funciona, ou seja, na antiga divisão social do trabalho, era feito exclusivamente pelo burguês). Nisso, TIQQUN até concorda:

Quando o hostis [inimigo] não é mais uma porção da sociedade – a burguesia –, mas sim a sociedade enquanto tal, enquanto poder, e que nos percebamos tendo que lutar não contra tiranias clássicas, mas contra as democracias biopolíticas, sabemos que todas as armas, assim como todas as estratégias, estão por ser reinventadas. O hostis se chama Império e, para ele, somos o Partido Imaginário (p. 28).

Lembremos de apenas uma passagem de Negri e Guattari, publicada em meados dos anos 1980, para reafirmar a proximidade: “Assim, agora tudo deve ser reinventado: o propósito do trabalho bem como as modalidades da vida social, direitos bem como liberdades. Novamente começaremos a definir o comunismo como luta coletiva pela libertação do trabalho, isto é, imediatamente, um fim à situação atual”.[xii]

Mas ainda não terminamos com as disparidades. Quanto à fenomenologia do trabalho, o advento daquilo que em Negri aparece como operário social e fábrica difusa, a voz não oferece grandes contestações.[xiii] Como vimos, a diferença está na organização, na passagem da composição técnica à política, procedimento metodológico comum nos anos do operaísmo na Itália. Segundo TIQQUN, essas análises não passavam de um artifício sociológico oportunista dos operaístas, que estariam menos em confronto com o capital do que com o Partido Comunista Italiano pelo comando sobre os operários.

Esse comando é a organização no sentido engessador que TIQQUN quer afastar: “o elemento revolucionário é o proletariado, a plebe. O proletariado não é uma classe” (p. 30). Ao tentar definir-se como classe, emula a classe dominante. Isso só é feito do ponto de vista dos interesses dos organizadores. A classe operária (ou os operários vistos como classe), então, seria essencialmente hostil ao comunismo; como classe, ela seria essencialmente socialista, reivindicando o “direito dos proletários de gerir o capital por conta própria” (p. 30). Os regimes socialistas o efetivaram: integração de todos e de cada um na relação capitalista de produção.

Não faria sentido então fazer como Negri e propor a organização dessa força de trabalho, organização do desejo. Não há projeto, afirma a voz, apenas afirmação imediata; não há militância, apenas prática calculista:

A afirmação imediata da necessidade ou do desejo, aquilo que implica identidade consigo próprio, infringe a pacificação imperial de maneira ética, e não tem nem mais o álibi do militantismo. O militantismo e sua crítica eram ambos compatíveis com o Império à sua maneira divergente; uma como forma de trabalho, e a outra como forma de sua impotência. Mas a prática que deixa tudo isso de lado, na qual uma forma de vida impõe sua maneira de dizer “eu”, está fadada à destruição se não tiver calculado seu golpe (p. 151).

Se com o operaísmo e posteriormente com o negri-ismo há uma preservação do trabalho no seio da organização, para TIQQUN a luta é por recusa total ao trabalho. Porém, cabe perguntar, qual a perspectiva que permite abandonar totalmente o trabalho? Voltaremos a isso. Por ora, cabe notar que se a organização do desejo leva ao cidadanismo e à integração total no Império, como aponta TIQQUN (“o voluntarismo mais simplório e a consciência pesada mais atormentada são próprias do cidadão”, p. 119), o desejo sem organização, portanto desorganizado, imediato mas calculado, certamente poderia ser descrito como um voluntarismo menos simplório (“O mais importante é jamais perder a iniciativa”, p. 77). Voluntarismo, em todo caso.

Não à toa, seu Partido se chama Imaginário. Ele não é, ele (eventualmente) acontece:

(…) o Partido Imaginário nunca pode ser individualizado como um sujeito, um corpo, uma coisa ou uma substância, bem mesmo como um conjunto de sujeitos, corpos, de corpos e substâncias, mas apenas como o acontecimento de tudo isso. O Partido Imaginário não é substancialmente um resto da totalidade social, mas o fato desse resto, o fato de que haja uma resto, que aquilo que é representado exceda sempre sua representação, que aquilo sobre o qual se exerce o poder lhe escapa sempre (p. 45).

Eu poderia insistir na semelhança com a multidão de Negri: o desejo que é posto em operação na reestruturação do trabalho é motor da organização porque excede e transborda aquilo para o qual foi posto em movimento. No entanto, a diferença não demora a se apresentar:

[O Partido Imaginário] não é em hipótese alguma um, em todo caso, tampouco é unificável numa totalidade isolável (…). É exatamente essa operação que Negri reproduz hoje, de forma atávica, chamando de multidão, no singular, qualquer coisa cuja essência é, segundo seus próprios dizeres, ser uma multiplicidade. Esse tipo de embuste teórico nunca vai ser tão medíocre quanto a finalidade a que se presta: unificar espetacularmente em um sujeito o que, a seguir, poderá se apresentar como intelectual orgânico (p. 64).

A linha está portanto traçada: integração, organização e identidade de um lado, acontecimento, fato e singularidade de outro. Nada de classes: cidadãos de um lado, Partido Imaginário de outro, de forma fluida, como fazem os rios Negro e Solimões. TCHIBUN!

Paralelos, assimétricos

Falei que a necessidade de TIQQUN afastar Negri vem de uma crítica (à apologia negri-ista ao cidadanismo) mas também de notáveis semelhanças que podem confundir o leitor. A coincidência se deve ao fato de TIQQUN enaltecer as lutas autonomistas italianas dos anos 1970, das quais Negri fez parte (ainda que da banda “podre”, a autonomia organizada). Esse é um movimento interessante do texto, porque se num primeiro momento a França é o centro do mundo, no aspecto negativo, no aspecto positivo essa posição é deslocada à Itália.[xiv] Maio “triunfante” – o francês, reconduzido ao Estado e à socialdemocracia – versus maio “rastejante”, o italiano, o sujo, o interminável, que ainda lutava e resistia quando a França comemorava o aniversário de dez anos de 68.

Da Itália, dois fenômenos são apreendidos caramente por TIQQUN: autonomia e recusa do trabalho. As experiências de autonomia operária, que teria rompido com o operaísmo[xv] presente na década de 1960 italiana, são o modelo, se é que assim se pode dizer (não pode, seria programa), da luta de hoje. Lembremos: “de novo a autonomia, o punk (p. 8)” (faça você mesmo). Quero arriscar uma crítica a essas experiências uma vez tornadas “modelos”. Por um lado, autonomia: poderia muito bem querer dizer, afirma a voz, aprender a roubar, a montar uma rádio clandestina, etc. Faça você mesmo; dá-se um jeitinho. Podemos lembrar que a autonomia é a forma de aparecimento da mercadoria: destacada, separada, alheada. Sim, o sujeito político também foi mercadorizado, foi autonomizado (no mesmo processo, diga-se); mas essa autonomização do sujeito foi levada a novas alturas com a flexibilização do trabalho. Da autonomia como “dar-se suas próprias regras” à autonomia como “dê comando a si mesmo”, “seja seu próprio chefe” e, portanto, à atomização do sujeito político. É verdade que TIQQUN rejeitou o “sujeito”, como vimos; então deveríamos falar em ação autônoma.[xvi] Em todo caso, uma ação chefe de si mesma (pelo lado afirmativo), sem lideranças nem vínculos duradouros (pelo lado negativo), é uma ação singular. Lembremos que não precisamos nos totalizar para atacar o inimigo: “De que importa esta ou aquela totalidade quando todos os ataques locais são, de agora em diante – e este é o único ensinamento válido da farsa zapatista –, um ataque contra o Império?” (p. 77). Sem comunidade, a aposta na singularidade corre o risco de extremo isolamento das partes, que se tornam mundos em si, e assim deixam de ser partes para tornarem-se pequenos todos isolados – mônadas, autossuficientes, autônomas, com o perdão pela redundância.

Simultaneamente à autonomia, a recusa do trabalho percorre a experiência italiana e é também modelar em Isto não é um programa: recusa absoluta do trabalho. Segundo a voz, Negri perdeu o aspecto absoluto da recusa ao afirmar, em determinado momento, que só se recusava o trabalho fabril, não os demais. De fato: a recusa do trabalho, em Negri e demais operaístas, não recusava o trabalho como tal, mas as relações capitalistas de trabalho. O que significa, no entanto, a recusa total do trabalho defendida aguerridamente por TIQQUN? Bom, em primeiro lugar, que ninguém jamais terá a necessidade de trabalhar, ou seja, que de alguma forma não especificada alimentação, vestuário, moradia e lazer vão estar disponíveis imediatamente a todos e todas: é só pegar. Poderíamos dar a isso o nome de utopia, o que nos permite, aliás, fantasiar um pouco. Nesse cenário, teríamos ou construído máquinas que produzem tudo, inclusive sua própria manutenção e reprodução (máquinas autônomas), ou teríamos transformado de tal forma as pessoas que elas não teriam fome ou sede, não sentiriam calor, frio ou dor, nem sono, nem cansaço, nem tédio. Mas esse mundo sem trabalho precisaria, em todo caso, ser produzido; acabar com o trabalho dá muito trabalho. A não ser que…

A não ser que tomemos como modelo as classes dominantes. As que exploram trabalho alheio (mas TIQQUN afirma ser necessário redefinir as classes). Quem, antes de todo e qualquer operário, recusou-se a trabalhar? A burguesia.[xvii] Minha provocação aqui é: se TIQQUN recusa o trabalho (fabril ou total), de onde vem sua comida, sua roupa, seus apartamentos, seus sítios, seus gadgets? Ninguém enche o bucho com valores imateriais que o norte passou a produzir. Essa mudança de “paradigma” da produção (ou mudança de endereço da produção material) se explica, em linhas gerais, por dois aspectos: pelo lado subjetivo, a fim de absorver a demanda de recusa de trabalho fabril, demanda expressa em lutas organizadas; pelo lado objetivo, a fim de reterritorializar a produção onde ela possa se tornar mais rentável. As faces subjetiva e objetiva se complementam: onde há mais conflito, o capital enfrenta maiores dificuldades de realizar seus ganhos.[xviii] Para onde foi essa produção? Ela foi terceirizada, ou seja, enviada o terceiro mundo, para além-mares, além-Lethes, onde o trabalho pode ser esquecido. E se esse for o caso (apresentado, todavia, de forma muito esquemática), nem faz sentido em se falar de redefinição da conflituosidade histórica: não temos aí, afinal, uma divisão global de trabalho? Uma divisão antiga, aliás: colônia x metrópole, periferia x centro.

TIQQUN não quer trabalhar, mas quem alimentou os corpos extensos dessa substância pensante chamada TIQQUN? Quem produziu o computador com que eles digitaram seus textos de ultra-esquerda e com que eles mantinham ligações com grupos estrangeiros? Quem fez a escada, absurdamente usada como elemento de instrução da acusação no processo instaurado contra Julien Coupat e oito amigos, colaboradores de TIQQUN, em 2008?[xix] Alguém fez a escada. Alguém trabalhou, e o produto desse trabalho não foi recusado.

A “morte do autor” é o argumento, de matriz foucaultiana, usado por Giorgio Agamben, para defender Coupat e seus amigos, supostos autores de TIQQUN, acusados de terrorismo pela lei francesa (provavelmente também o seriam pela lei brasileira). Para Agamben, A autoria seria um conceito equivocado, ordenador do discurso, figura do sujeito, ou então atribuidor de responsabilidade penal.[xx] Do ponto de vista prático, a negação da autoria é um jeito inteligente de tirar o cú da reta,[xxi] fazer com o que um texto simplesmente “apareça”, sem corpo, apenas uma voz, puro pensamento. Mas, pergunto, e a escada? Também simplesmente aparece? Certamente não. Talvez ela não tenha autor, mas ela é produzida, por sujeitos produtores, sujeitos produzidos, trabalhadores.

Diante de um cenário desse, uma afirmação de que o zapatismo é uma farsa só pode soar como uma ofensa gratuita, uma bravata discursiva. É preciso tomar um lado. TIQQUN e EZLN não estão diante de nós como indiferentes, como mercadorias a serem optadas. Nenhuma singularidade nossa ou deles cria uma equidistância, a possibilidade de optar indiferentemente por um ou por outro. Ao contrário, há uma proximidade nossa com aqueles que estão do lado de cá dessa velha linha. Proximidade e comunidade com os do lado de cá dessa velha linha traçada entre os corpos que trabalham, de um lado, e, de outro, um discurso sem autor e sem corpo que paira no ar, res cogitans. Sendo assim: “Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os Panteras Negras! Lampião, sua imagem e semelhança. Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia”, afirma a Nação Zumbi antes de passar a “Banditismo por uma questão de classe”.


Notas

[i] Mario TRONTI. Operai e capitale (Roma: DeriveApprodi, 2006), p. 33-34.

[ii] A revista TIQQUN foi fundada em 1999 a fim de “recriar as condições para uma comunidade outra” [recréer les conditions d’une autre communauté] e dissolvida em 2001, após os atentados de 11 de setembro em Nova York. Teve duas edições: a primeira com o subtítulo Organe conscient du Parti Imaginaire / Exercices de Métaphysique Critique (“Órgão consciente do Partido Imaginário / Exercícios de Metafísica Crítica”) e a segunda com o subtítulo Organe de liaison au sein du Parti Imaginaire / Zone d’Opacité Offensive (“Órgão de ligação no seio do Partido Imaginário / Zona de Opacidade Ofensiva”). Nenhum dos artigos é assinado. Conforme informação apresentada no cólofon da primeira edição, costuma-se atribuir ao “comitê editorial” da revista os nomes de Stephan Hottner, Julien BoudartFulvia Carnevale, Junius Frey, Joël GayraudStephan HottnerRémy Ricordeau e, em especial, Julien Coupat, a quem me referirei adiante. Para a versão digital das publicações, ver < http://bloom0101.org/ >.

[iii] Comitê Invisível, A insurreição que vem (Recife, Edições Baratas, 2007), p.141.

[iv] Refiro-me aos levantes de 2005. Cf. Paulo ARANTES, Alarme de incêndio no gueto francês. Disponível em < http://www.panoramadapalavra.com.br/antivalor/arantes118.htm >.

[v] Cf. L’enigma democrático, 2007, disponível em < http://www.sinistrainrete.info/teoria/63-lenigma-democratico.html > e Per la critica della democrazia politica, 2008, disponível em < http://www.sinistrainrete.info/teoria/321-httpwininfoautorgimmaginiheadgif-per-la-critica-della-democrazia-politica.html >.

[vi] “Há já algum tempo que eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constantes nas ciências”. René DESCARTES, Meditações metafísicas (São Paulo, Abril Cultural, 1973), p. 93.

[vii] “Foi pelas lutas sociais, e não contra elas, que o capital se instalou no interior da humanidade, que esta se reapropriou efetivamente dele até tornar-se, estritamente falando, o povo do capital” (p. 31).

[viii] Michal HARDT e Antonio NEGRI, Império (Rio de Janeiro, Record, 2012), pp. 74-75.

[ix] Definir o que seria o tal “plano de consistência” (assim como a definição de qualquer outro conceito na obra de Deleuze) é muito difícil. Também chamado de “plano de imanência”, ele pressupõe um “caos primordial”, “um afluxo incessante de pontualidades de todas as ordens, perceptivas, afetivas, intelectuais, cuja única característica comum é a de serem aleatórias e não ligadas”. No caos, o plano de consistência é um corte que emerge e “age como um crivo”. Não é uma “organização”, pela qual se imaginaria um critério que, exterior aos próprios elementos, atribui a eles funções de órgão num corpo definido. Ao contrário, esse crivo é imanente, ele nasce no encontro, na composição e na coordenação entre os elementos, constituindo-os e os fazendo agir com alguma harmonia, mas também levando-os a se dissolver: “‘De imanência’ e não mais ‘transcendental’: porque o plano não precede o que vem povoá-lo ou preenchê-lo, mas é construído e remanejado na experiência” (Cf. François ZOURABICHVILI, O vocabulário Deleuze, Rio de Janeiro, 2004, verbete “Plano de imanência (e caos)”).

[x] Thiago S. A. FONSECA, Hardt, Negri e a organização do desejo, dissertação de mestrado (São Paulo, FFLCH-USP / Departamento de Filosofia, 2015). Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-11112015-133853/pt-br.php >.

[xi] Para a crítica de Zizek, ver “Have Michael Hardt and Antonio Negri rewritten the Communist Manifesto for the twenty-first century?”, Rethinking Marxism, vol. 13, nº 3/4, 2001. Para a de Boron, ver Império e imperialismo – Uma leitura crítica de Michael Hardt e Antonio Negri (Buenos Aires, CLACSO, 2002).

[xii] Félix GUATARRI e Antonio NEGRI, Communists like us (Nova York, Semiotext(e), 1990).

[xiii] “(…) a reestruturação ofensiva do modo de produção capitalista que responde, desde o ínicio dos anos 1970, à reconquista da conflituosidade operária nas fábricas e ao notável desinteresse pelo trabalho que se manifesta nas jovens gerações depois de 68: toyotismo, automação, enriquecimento do trabalho (…)” (p. 114).

[xiv] “A Itália dos anos 70 continua sendo, em todos os aspectos, o momento de insurreição mais próximo de nós” (p. 16).

[xv] Opto pelo termo “operaísmo” (e o derivado “operaísta”) como tradução do italiano “operaismo” (e “operaista”). A diferença está no acento, com o que aportuguesei (ou abrasileirei) a palavra. A intenção foi marcar a especificidade da experiência italiana frente aos demais “operarismos” e “obrerismos” de que se tem notícia, sem ter que recorrer ao termo estrangeiro.

[xvi] A autonomia, insiste a voz, não é a afirmação de novos sujeitos, mas “sua dessubjetivação violenta, prática, em ação, a rejeição e a traição do papel que recai sobre eles enquanto sujeitos” – “separ/azione” (p. 60-61).

[xvii] A grande burguesia, que compra trabalho alheio, e a pequena-burguesia, que aspira ao não-trabalho. “[A] acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original da teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano. Sua origem nos é explicada como uma anedota no passado. Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais. De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer o pão com o suor do seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso. Seja como for. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza de poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar”. Karl MARX, O capital – livro I [1867] (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 785.

[xviii] O correlação entre recusa de trabalho e reterritorialização da produção material é apresentada por Hardt e Negri em Império como paradigmática para todo o norte global.

[xix] Em novembro de 2008, algumas pessoas foram presas na França sob alegação de “associação criminosa para prática de atos de terrorismo”, entre elas Julien Coupat. Segundo o procurador, ele era membro de uma “célula invisível” que seria responsável por uma sabotagem na rede de trens de alta velocidade no país. O episódio ficou conhecido como “caso Tarnac”, vilarejo onde Coupat residia num armazém ocupado, e renovou o interesse por TIQQUN. Após seis meses de detenção, Coupat foi liberado em condicional. A escada mencionada, uma escada comum dessas que se encontram em muitos lares, foi apreendida e catalogada como “equipamento de escalada”.

[xx] “Ora, Julien Coupat e seus amigos não podem ser os autores de nenhum texto publicado em TIQQUN ou em outro lugar, pois eles se situam justamente em uma zona onde sujeito e dispositivo coincidem a tal ponto que a categoria mesma de autor não pode mais funcionar, não porta mais sentido. Do mesmo modo, creio que somente na perspectiva aberta por TIQQUN, como por exemplo, a constatação da guerra civil permanente instaurada pelo Estado em países dito democráticos adquire seu sentido, de outra forma inexplicável”. Giorgio Agamben, TIQQUN, o retorno. Disponível em http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/tiqqun.html

[xxi] Não nego a sagacidade do uso do conceito na situação. O “terrorismo”, lá como aqui, torna-se tipo penal que engloba qualquer (suposta) ação de “lesa pátria”. É compreensível, portanto, argumentar a “morte do autor” para evitar a prisão, como também é compreensível o ódio ao Estado que assim procede. Mas podemos lembrar de outro autor, diante de uma situação um pouco pior, Carlos Marighella, com seu Mini-manual do guerrilheiro urbano (1969): “Finalmente, a razão porque este manual leva minha assinatura é que as ideias expressadas ou sistematizadas aqui refletem as experiências pessoais de um grupos de pessoas engajadas na luta armada no Brasil, entre os quais eu tenho a honra de estar incluído. De maneira que certos indivíduos não terão dúvidas sobre o que este manual diz, e podem sem demora negar os fatos ou continuar dizendo que as condições para a luta armada não existem, é necessário assumir a responsabilidade do que é dito e feito. Portanto, anonimato torna-se um problema num trabalho como este”.


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