(((There is no future in E. dreamland)))
O filme “O segredo de seus olhos” é carregado. Sua trama está embebida numa tensão não verbalizada, cuja expressão limite é a cena da moça seviciada, que vem à tona já nos primeiros minutos de fita. Na história, o promotor público aposentado, Espósito, tenta escrever um romance sobre o caso de uma jovem professora, na Buenos Aires dos anos 70, estuprada e morta em seu apartamento. Em meio à agitação que antecede o golpe militar argentino, Espósito e seu colega Sandoval lutam para esclarecer o caso e prender o criminoso. Porém, o que a investigação do protagonista tem a nos revelar é muito pouco (e mesmo a conclusão mirabolante, com seu sadismo bom-moço, não vem nos entregar nada, pelo contrário). Assim, o que devemos fazer é seguir algumas pistas em paralelo, exatamente as que o investigador deixa passar, pra podermos enxergar a teia de relações que reflete a Argentina daquele tempo, alvo de uma brutal mutilação.
She ain’t no human being.
((()))
Comecemos apontando certa cumplicidade entre os personagens masculinos: O protagonista Espósito (esposo?), que toma as dores do viúvo da professora (Morales) e persegue o assassino (Gómez), se vê obcecado pelo amor do marido da vítima. Amor que ele considera perfeito, ainda que (ou porque) devotado a uma mulher morta. No extremo oposto está o assassino, também ele devotado ao amor pela professora, que era sua conterrânea, desde a juventude; mas acaba levando essa paixão a termo com a destruição de seu objeto de atração. Pegos entre estes momentos conflitantes estão os investigadores Sandoval, um beberrão inveterado e autodestrutivo que sabota o próprio casamento. E o próprio Espósito, solteirão boa pinta que não tem coragem de engajar num relacionamento que termine em compromisso. Diante deste quadro poderíamos dizer que o que aproxima o marido da vítima (Morales), o assassino (Gómez), e os dois burocratas (Espósito e Sandoval), é a relação que estabelecem com o sexo oposto, e suas tentativas de afastá-lo de seu convívio. Ao estabelecer esta distância (que como reação ao complexo de Édipo, sustenta o desejo), eles “objetificam” a mulher, que por não se dissociar completamente da figura materna, passa a ser alvo de projeções ora demasiado idealizantes, ora redutoras e aviltantes. Como no cancioneiro popular, em que a mulher amada aparece ora como a santa que pôs o no mundo, ora como uma qualquer que o manipula e enlouquece.
Esta lógica se presta a submeter as mulheres ao capricho masculino, pois a imposição dessa dualidade é das formas mais desgastadas de controle social, e vem sustentar a separação (daí surgem uma série de fantasmagorias sobre diferenças entre gêneros, que mal conseguem disfarçar seus objetivos classistas). No limite, ao submeter os indivíduos a uma hierarquia classificatória, ela serve à mercantilização dos corpos femininos, impondo uma distinção entre mulheres “decentes” e “perdidas”. Ainda que separadas pelo abismo de classe, muitas acabam unidas quando a imposição alheia as transforma em objeto de escambo, para fins comerciais ou de casamento.
A. de argentina, B. de brasil e C. de chile (ditadura se escreve a máquina).
(((Potential H-bomb)))
E onde entra a Argentina e seu golpe de Estado? Pois exatamente aí, na aplicação desta lógica classificatória por parte dos detentores da violência estatal. No escritório onde trabalham os personagens de Espósito e Sandoval (ajudados de perto por Irene Hastings, sua superior hierárquica) gira de mão em mão uma máquina de escrever em que a letra “A” está emperrada. Poderíamos encontrar na “fixação” representada por essa piada uma relação com o conceito de objet petit a, desenvolvido por Lacan, a saber, a esfera do objeto que resiste à simbolização e representa o excesso inerente ao desejo: o que nele nunca pode ser alcançado. Como a criança nos primeiros estágios de desenvolvimento, ainda na Fase do Espelho em que, ao descobrir no próprio reflexo as fronteiras de sua individualidade, percebe também que não existe em simbiose com o seio da mãe, desencadeando uma ânsia inalcançável por completude. A partir daí a ligação com a primeira letra em A-rgentina, lugar em que o processo de re-acomodação política envolvia serões de tortura e extermínio, assume outra perspectiva.
Pois tal processo era justificado por seus idealizadores como atendendo ao chamado de um nacionalismo sincero, que visava preservar a pureza ameaçada da mãe pátria, livrando-a de indivíduos que teriam se desligado dela num nível fundamental. Porém, que a crença numa ameaça efetiva, por parte dos perpetradores destes abusos, servisse muito mais à satisfação sádica deles, nos revela de quantas sutilezas a imposição da ordem é capaz, e com quais estruturas psíquicas ela se comunica.
Assim, ao mesmo tempo em que acompanhamos a investigação “branca” dos heróis, somos também apresentados ao aparelho estatal empregado na captura e coerção, não de estupradores e assassinos, mas de dissidentes políticos. Enquanto o edifício democrático vem abaixo, com um sem fim de violações à legalidade, os protagonistas se alienam da impotência (sexual? Política?) em que se encontram por meio de sua busca ao “verdadeiro culpado”.
Vale a pena conferir o documentário “Cidadão Boilesen” de Chaim Litewski, que retrata as aventuras do empresário dinamarquês Henning Albert Boilesen: entusiasta e participante ativo da Operação Bandeirantes, Oban, de caça aos comunistas durante o regime militar brasileiro.
Assassino no armário, mamãe no coração
(((Don’t cry for me A.)))
Então, em dado momento do filme, morre o burocrata alcoólatra e autodestrutivo (Sandoval) e o estuprador (Goméz) é colocado no closet-cativeiro, onde era mantido pelo marido da vítima havia mais de vinte anos, pra não ferir nossa sensibilidade. Sobram o maridão justiceiro e eternamente fiel (Morales) e o burocrata solteirão (Espósito). Desse modo, quando Espósito descobre o “conteúdo reprimido” do marido, a revelação vem para associar o sadismo extremado do criminoso à culpa sem descanso do marido, anulando a ambos. O marido e o “antimarido” se tornam a mesma pessoa, a conivência com o crime (estupro? Vingança do marido?) finalmente assume a máscara da punição pelo crime. O protagonista pode finalmente se reconhecer na comunidade dos homens de vontade, como um daqueles que foi “até as últimas conseqüências” (como o amigo que se sacrificou por ele, o marido que puniu o estuprador, o assassino que possuiu seu amor de infância, os militares que eliminaram famílias inteiras, etc…). O fantasma desprotegido da mãe-moça violada pode finalmente descansar, à distância, sem que lhe voltemos uma palavra, sem se lembrar do que aconteceu neste país, naquele tempo, tão horrível… Mas já passou…
Mãe, Esposa e Pátria (o papai não te merece…)
(((Living in a material world)))
Sim, a personagem Irene Hastings é pega na linha de fogo, num esquema mesquinho de reacomodação de poderes, que resulta em toda sorte de abuso. Mas o que ela realmente esperava de seu amado Espósito (que de alguma forma encenava para ela a busca do amor sincero e a luta contra a opressão do mais forte) era que ele a assumisse em casamento, o que funcionaria como uma liberação do fantasma paterno (que paira ameaçador sobre todos, corporificado na cena de tortura). Lembremos que ela era a mais inteligente e preparada no Tribunal Penal, mas que seu prestígio vinha, em grande parte, de relações familiares. Ao sentir-se atraída por um subalterno que se debate “contra o sistema”, ela se identifica com sua rebeldia e impotência, ansiando por se libertar. Ao mesmo tempo se mantém sob influência da aprovação familiar, por meio de sua fixação na idéia de casamento.
A imagem do pai que entrega a filha intocada no altar deve ligar-se àquela do monstro no cativeiro secreto. Pois o pai, que nunca havia se revelado um monstro (democracia-ditadura?), também não foi plenamente desafiado, como na cena em que ela interroga o suspeito e faz pouco de sua virilidade de propósito, para despertar sua fúria. Uma versão branda desse movimento não seria a que vemos em casas de família, ou escritórios, quando em grupo os funcionários (ou agregados) tentam adivinhar o humor do chefe-provedor? “Ele anda tão quieto, né”; “O será que aconteceu?”; e o kafkiano “Foi alguma coisa que eu fiz?” Na mesma lógica de associar certos desejos a proibições e desidentificar-se deles; essa transferência da pulsão para o outro passa a entender esse outro como o “portador do negativo”, o que o afasta e idealiza. Quando tais mecanismos se associam a outras esferas da vida como a religiosa, política ou de classe; esse controle “seqüestra” o desejo, que se aliena dos sujeitos em seus próprios corpos. Isso apenas para se manifestar mais adiante, transfigurado em violência branda (maltratar “subalternos”) ou excessiva (torturar e matar um estudante).
O que encontramos novamente é a dualidade, que mascara certas esferas da sexualidade, tornando os sujeitos estranhos para si mesmos. Irene, por não compreender os mecanismos de transferência operando em si (a atração pela figura da autoridade, daquele que age pelo bem comum e esquece as próprias vontades, com um “monstro”devidamente sob controle, que lhe confere poder e confiança), assume essa máscara paterna com arrogância e um gosto amesquinhado por se impor sobre os que lhe são subordinados. O mais triste nessa ciranda é que a moça acaba por perder a experiência que (ela intuía) poderia mostra uma saída para além desse labirinto horroroso e autofágico que é a opressão paterna.
A serpente enlouqueceu e devora a própria cauda, bicho.
(((No future for you)))
Assim, no final do filme o caso de amor entre Espósito e Irene começa não com uma revelação, mas com um segredo. No cativeiro onde meteram o assassino, como a letra A que faltava ao bilhete (temo – teAmo) e na máquina de escrever, não é apenas a faceta sádica que deve ficar oculta, mas a identificação inerente à atração sexual. Segundo a psicanálise, durante o desenvolvimento do eu, na fase de aquisição da linguagem, o individuo deve superar o complexo de Édipo (desligando-se da mãe) e entrar no mundo da socialização por intermédio do pai, com quem estabelece uma relação de rancor e admiração. Até este ponto somos todos iguais sob o sol, os gêneros não passam de um esboço. Quando uma relação sexual consentida (e ansiada) acontece, a excitação das partes vem não de uma espécie de exotismo ou mistério do outro, mas de uma intensa identificação com o objeto de desejo. E é exatamente para fugir dessa identificação que os personagens masculinos têm uma postura ambígua em relação às mulheres em cena. A sombra edipiana pesa sobre eles através do fantasma da mãe que, por ser a primeira (e traumática) manifestação do desejo, deve “desaparecer”. Tal desaparecimento do desejo por meio da linguagem alivia a tensão advinda da ameaça de castração por parte do pai – que assume a máscara de mantenedor da ordem, através da punição (virtual) ao incesto.
Assim, o assassino(Goméz) encena a grande monstruosidade do pai quase como a desculpar-se com este; ao mesmo tempo em que pune aquela (mãe) que o macula e enfraquece aos seus olhos (o mesmo movimento fazem os outros três, guardadas as proporções). Assim a vítima revelaria em si, invariavelmente, as pulsões que o outro reprimiu a custo, por isso deve ser dissociada da figura materna, reduzida a coisa e eliminada.
And I am a material girl
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Como se vê é a lógica paternalista que desenrola essa série de transferências abjetas, impondo a distinção de gêneros através de ameaças, veladas ou não. O caso de Irene, como em outras relações especulares ao longo do filme, não esconde um claro contraste entre ela e a professora assassinada. De certa forma, se poderia dizer que também Irene acaba enredada pelo “grande rio da vida”, que conduz as vítimas da auto-afirmação. Este processo, no filme, opõe a história da bem sucedida e casadoira advogada, àquela do estupro e assassinato da jovem professora (isso num elenco demograficamente dominado pelo gênero masculino, cada qual absorto em delírios de potência e inferioridade). O procedimento vem nos revelar uma relação insólita, mas sintomática: assim como o sistema democrático separa a política de nossas vidas, as contradições do meio social se alienam das consciências de formas mais e mais sutis (apresentando, é claro, certas “explosões” sistemáticas. E quem não vê no noticiário policial as mulheres agredidas e mortas todos os dias por companheiros inconformados?).
Talvez a separação de classe tenha como base a distinção de gênero, e dependa dela num nível fundamental.
Alguém tem uma luz?
Publicado em: Dazibao 1