Lenz, um relato

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Publicado originalmente em alemão, como Lenz (Berlim, Rotbuch Verlag, 1973). A história não apresenta nenhuma menção a datas, mas a maior parte dos críticos a ambienta entre 1968 e 1970 – com alguns episódios apontando para a datação de meados do ano de 1970. Tradução de Irene Aron, publicada originalmente no Brasil junto ao Lenz (1836) de Georg Büchner, no volume Lenz – precedido por Lenz, um relato (São Paulo, Brasiliense, 1985), a cujas páginas os excertos a seguir fazem referência.

[36-8] Ao fazer compras, Lenz encontrou um escritor que certa vez, em dias passados, fora seu mecenas. Em seu rosto Lenz percebeu essa tristeza que distingue as pessoas que conseguiram realizar todos os seus sonhos e que passam a se perguntar surpresas o que lhes resta ainda por fazer neste mundo, que para elas já se tornou posteridade. Lenz acompanhou o antigo protetor no caminho para casa e imediatamente viu-se envolvido numa conversa. Lenz percebeu que todos os argumentos do protetor já tinham sido publicados em alguma parte.

Quis saber se Lenz já tinha tomado juízo. O movimento estudantil tinha sido importante e fecundo, a sociedade devia a ele estímulos importantes. Agora, porém, outros grupos da sociedade tinham assumido para si as melhores iniciativas dos estudantes, enquanto estes continuavam acreditando que o mundo todo ainda girava em torno deles. Era necessário reconhecer esse processo e participar dele, em vez de lamentar as perdas inevitáveis às quais estavam expostas as ideias dos estudantes, a caminho de sua penetração na sociedade. Os estudantes gostavam de si mesmos no seu papel de profetas no deserto, acusou-os de terem medo de sujar as mãos com o trabalho prático dentro das instituições e de possuir um medo autodestruidor do sucesso.

Incomodava Lenz que não tivesse uma opinião contrária à do seu protetor em relação a todos esses pontos. Involuntariamente, Lenz tinha assentido com a cabeça muitas vezes. Apesar disso, sentia-se tentado a contradizê-lo em tudo. Após algumas tentativas insatisfatórias nesse sentido, descobriu que não o irritavam tanto as frases do protetor, e sim seu tom digno e terno que acompanhava tudo isso. Como intuito de mudar de assunto Lenz perguntou pelo trabalho do seu acompanhante e por seus planos. Mas este não desistiu do tema, pediu a Lenz que tomasse uma posição. Ao fazê-lo, ia empurrando Lenz com a barriga bastante considerável pela entrada de um prédio, nem percebendo que interrompia Lenz tantas vezes que este não tinha a mínima chance de lhe responder. Lenz tentou por inúmeras vezes escapar por debaixo do braço que o seu antigo protetor apoiava na soleira da porta, mas só conseguiu abrir a boca quando um morador do prédio pediu licença para entrar.

– O senhor não disse a mesma coisa antes mesmo que a rebelião dos estudantes começasse? – perguntou Lenz. – Lembro-me de que o senhor preveniu que haveria confusões antes mesmo de alguém começar a se por em marcha. Enquanto os outros iam para a rua e se envolviam com a polícia, o senhor erguia o indicador, prevenindo, distinguindo cautelosamente o certo do errado, e aumentava o número de suas edições e construía casas. Mas não é a mesma coisa que alguém que jamais pegou numa pedra em lugar da esferográfica condene agora que se joguem pedras, com as mesmas frases que o outro usa para descrever sua experiência, e chegue à conclusão de que agora já não faz sentido atirar pedras. Praticamente, as mesmas frases não significam a mesma coisa, o senhor não acha?

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[55-6] Finalmente, o crítico perguntou por que Lenz não o contestava.

– Porque não sinto nada quando o senhor fala – gritou Lenz – porque não sinto nada se o contesto. Vocês possuem – disse então, sem dirigir-se concretamente ao crítico – tudo o que os menos privilegiados apenas desejam, mesmo que não seja tudo. Vocês possuem carros velozes, casas espaçosas, mulheres bonitas, embora elas os enganem. E já que vocês não trabalharam para obter tais vantagens, vocês, com razão, ficam com remorso. Cheios de espanto, vocês descobrem que são absolutamente supérfluos. Esta descoberta, porém, os ofende de tal maneira que vocês tentam pegar para si rapidamente o movimento autentico que compromete os seus privilégios, nomeando a si mesmos o seu líder. Sem colocar sua própria imagem diante de si e de sua classe, sem suportar seu olhar nem mesmo por um segundo, e sem modificar-se, vocês forjam uma imagem ideal do trabalhador, cuja principal função é a seguinte: ele não deve ser como vocês. Já que vocês estão a ponto de explodir de tanto egoísmo, ele deve explodir de solidariedade. Já que vocês começam a enojar-se da delicadeza de suas mãos, ele deve ter mãos cheias de calos, de preferencia segurando uma chave de fenda. Já que os seus teatros estão se esvaziando, ele não deve querer saber absolutamente mais nada a respeito de cultura, nem mesmo da sua própria. Já que vocês não sabem mais o que fazer consigo mesmos, ele deve sentir-se absolutamente perdido sem a sua liderança. Se antes, enquanto as coisas estavam melhores para vocês, vocês se apoderavam dos frutos do trabalho social, agora que isto não é mais tão fácil assim, vocês se apoderam da teoria sobre a abolição da exploração. A graça está no fato de que a classe explorada, com a qual vocês sonham, esta realmente começando a se libertar, apenas ela faz isto sem levar em consideração suas ideias insultuosas a respeito dessa libertação. Vocês devem compreender, finalmente, que a melhor forma de apoiar esse movimento é começar a luta contra sua própria classe, sem o que vocês não podem conduzir esse movimento. Vocês não são tão importantes assim.

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[100-01] Quando comia fazia-o apressadamente, como se alguém fosse tirar-me o prato logo, nunca tragava direito a fumaça de um cigarro, quando ficava sentado tinha a sensação de que os outros ficavam sentados durante mais tempo que eu. Percebia os detalhes apenas quando eram estranhos ou singulares. […] Na verdade eu percorria as coisas que me cercavam sempre numa velocidade exagerada e percebia apenas aqueles detalhes que podia captar e guardar para mim naquela pressa. Mais tarde, quando aprendi a pensar politicamente, mudou a direção de minha percepção, mas nada mudou na pressa de fazer de um detalhe, um conceito. Quando os operários lutavam por salários mais altos, aos meus olhos já estavam lutando pela abolição do trabalho assalariado. Quando usavam de força contra um companheiro que furava a greve, estavam finalmente declarando-se partidários da força proletária, quando chamavam um funcionário do sindicato de traidor, tinham percebido a traição dos sindicatos. Só podia levar a sério um detalhe quando o transformava em conceito, quando podia dizer que esse detalhe significava a mesma coisa que aquele detalhe. Aqui na Itália, onde dedico-me com mais paciência aos detalhes, observo aos poucos o medo que faz com que alguém devore com tanta rapidez aquilo que percebe e o transforme em conceito.

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[114-17] Lenz fez amizade com um operário que conhecera num dos primeiros dias. Era convidado por Roberto frequentemente para o almoço ou o jantar, acompanhava-o em suas caminhadas pela cidade, à tarde ou aos sábados pela manhã ia junto com ele às compras, fazer visitas, a reuniões. Chamou a atenção de Lenz o fato de que o apartamento de Roberto fosse em tudo diferente daqueles que Lenz frequentava. […] As refeições não eram improvisadas e quando Lenz acompanhava a mulher de Roberto às compras, percebia que embora Anna na maioria das vezes comprasse coisas baratas, de vez em quando levava um vinho especialmente caro ou um pedaço de carne especialmente bom. Lenz observou que embora seus amigos estudantes também comprassem coisas caras e baratas, essa mistura era absolutamente aleatória, resolviam o que comer no momento em que viam a mercadoria. A conta não os surpreendia porque eram de qualquer modo de opinião que as grandes empresas de gêneros alimentícios vendiam as mercadorias a preços exagerados. Uma noite, Anna perguntou-lhe se estava gostando da comida. Lenz respondeu com as frases de costume, mas subitamente achou essa falta de atenção uma ofensa. Significava que Anna tinha usado sua imaginação em vão. Ele refletiu por que não podia dizer se aquela maneira de preparar a carne lhe agradava mais que uma outra qualquer, por que razão isto lhe teria parecido uma frase vazia. Estava desacostumado a prestar atenção à comida porque o significado exagerado que a comida tinha na burguesia representava realmente uma falta de atenção em relação a outras coisas mais importantes. […]

Nas reuniões de operários falava-se principalmente a respeito dos acontecimentos diários na fabrica. Lenz admirava-se com a raiva e a falta de consideração com que os operários criticavam sempre as decisões dos sindicatos, mas sem merecer nenhum dos conceitos que os estudantes propagavam, “o lacaio do empresário”, etc. Lenz perguntou a seu amigo como ele pode conciliar esses ataques com sua função como funcionário local do sindicato comunista.

– Naturalmente, fico no sindicato enquanto puder – disse ele – por que deveria fazer a eles e a vocês o favor de sair de campo voluntariamente? Claro, tenho mais dificuldades aqui do que nos grupos de vocês, mas também tenho mais influência. Precisamos de vocês: vocês podem nos ensinar coisas que não compreendemos, vocês nos demonstraram formas de luta que já tínhamos quase esquecido, vocês podem nos ajudar a escrever panfletos que não sairiam sem sua ajuda. Mas por quanto tempo vocês ficarão conosco? Seu entusiasmo por nossa causa, de onde vem ele? Vocês não têm os mesmos problemas que nós porque vocês não precisam realizar o mesmo trabalho que nós. Enquanto seguirmos as ideias de vocês está tudo bem. Mas o que vai acontecer se não for mais conveniente para nós seguirmos as suas ideias, se tivermos que decepcioná-los? Se nos alegrarmos a respeito de um êxito que pode parecer demasiado insignificante para vocês? Conhecemos nossos interesses porque temos que defendê-los diariamente. E os seus interesses, será que os conhecemos? E vocês os conhecem? O que causa sofrimento a vocês? O que vocês querem para vocês mesmos? Isso logo vamos perceber, mas enquanto eu não o souber, por que razão deverei confiar mais em vocês do que num funcionário do sindicato de quem pelo menos sei que deseja manter seu emprego? Gosto de vocês porque vocês são corajosos. Mas vocês estão escondendo alguma coisa.


 


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