Estética depois do Fim da Arte – Uma entrevista com Susan Buck-Morss

Fig 6 - Robert Mapplethorpe, X Portfólio, Helmut and Brooks N.Y.C., 1978, impressão de prata coloidal, 35cm x 35cm_1

Entrevista publicada originalmente no Art Journal, vol. 56, n. 1 (New York, College Art Association, Spring 1997), p. 38-45. Trad. Adele Motta

Grant Kester: Ao longo dos últimos anos tem havido um crescente interesse no mundo da arte em recuperar o “belo” e o prazer visual como conceitos “morais e políticos”, em parte porque se entende que resistem à redução analítica e que fornecem acesso ao que um crítico descreveu como “respostas corporais” que derivam de “fora de consciência”.[1] Embora nem sempre claramente anunciado, estas obras dependem de um enquadramento valorativo derivado da filosofia estética do início da modernidade, que define o belo em termos da relação entre o sujeito[2] individual (identificado pelo “gosto” pessoal) e o conceito de uma sociedade ideal, unidos por uma linguagem comum (por exemplo, o Gemeinsinn de Kant ou o sensus communis de Shaftesbury). Quando considerada sob a luz desta tradição, a questão do belo depende da atribuição de um status transcendental a modos de experiência que são baseados em modos historicamente contingentes de dominação cultural e política (baseados em classe, raça, gênero e assim por diante). Os seus escritos sobre visualidade e estética parecem ser particularmente conscientes desta tradição. Contudo, você também trabalha para recuperar ou remodelar o conceito de estética. Você poderia falar um pouco sobre a importância da estética, do belo e do prazer visual em sua pesquisa?[3]

Susan Buck-Morss: Eu levo a sério a tese de Walter Benjamin sobre a liquidação da arte no ensaio “A obra-de-arte…” .[4] Ele é bem insistente: a arte como a conhecemos está chegando ao fim – embora haja muitos leitores do ensaio (incluindo, comumente, meus alunos) que se recusam a ver o que ele diz. Não é só uma questão de perda da “aura” da obra de arte. Benjamin argumenta que em meados do século XX fazer arte, no sentido burguês, não é mais sustentável. A arte burguesa sempre foi uma mercadoria, comprada e vendida no mercado, então a mercantilização da arte não é o ponto. O argumento dele é, ao contrário, que as condições tecnológicas de produção embaçaram tão completamente o limite entre “arte” e objetos culturais em geral, que seu status especial e separado não pode ser mantido. A engenharia desafiou o status especial da arquitetura; o jornalismo, da literatura; a fotografia, da pintura; o cinema, do teatro – e ele é otimista sobre esses desenvolvimentos. Eles o levaram a afirmar o potencial da cultura de massas, sua habilidade de democratizar não só o acesso à cultura, mas à própria produção cultural.

Eu acho que museus, hoje, estão conservando não só objetos de arte, mas a ideia de arte – depois de seu tempo, por assim dizer. Os museus se colocam contra a comercialização da cultura, mas a lógica do valor da arte é diferente? Em vista da cifra pela qual um Van Gogh é vendido no mercado mundial, dado o fato de que este mercado é motivado tanto pelo valor relativo entre o dólar e o iene, digamos, quanto por qualquer valor intrínseco da tela, existe aí uma distinção significativa? As observações de Benjamin se basearam nas formas de cultura de massa de seu tempo – a pura quantidade da reprodução dessas formas. Hoje é menos uma questão de reprodução tecnológica e mais de mediação tecnológica. O meio é a mensagem. Não estou sugerindo determinismo tecnológico, não mais do que Benjamin estava. Conteúdo importa. Mas as implicações políticas deste conteúdo dependem de sua transmissão e recepção. O rádio é um bom exemplo. Nos anos de 1930, das “conversas ao pé da lareira” de Franklin Roosevelt aos longos e agressivos discursos de Adolf Hitler, a estrutura do rádio era propagandística – uma via de mão única da influência, do centro do poder para fora. Mas hoje o rádio, assim como a música que toca nele, é tremendamente flexível em criar redes locais – e não tão locais – de troca cultural. Você pode realmente rastrear o movimento de uma gravação produzida, digamos, na África Ocidental, que migra para o Caribe, então para a Costa Oeste dos EUA ou para centros urbanos na Europa. Menciono o rádio porque não é uma tecnologia nova. Redes de computador, é claro, podem funcionar do mesmo modo. Mas elas podem funcionar de um modo tão autoritário quanto foi o rádio dos anos trinta. Então, novamente, não é uma questão de determinismo tecnológico.

Mas eu estou bem longe da sua questão, sobre o belo retornando como critério para “arte” – não só num sentido formal, mas num sentido político. Bem, tem algo disso, mas talvez não do jeito que alguns críticos atuais pretendem. Eu certamente não acho que uma completa rejeição ao “belo” é por si mesma politicamente progressista, embora haja artistas trabalhando hoje que parecem pensar que sim. Estou me referindo a uma arte conceitual dos anos 1980 que pesava muito na mensagem e dispensava o prazer da experiência sensorial. Ou o movimento atual da arte “abjeta”. Algumas delas são visualmente poderosas. Eu gosto da obra de Cindy Sherman, por exemplo, mesmo seus momentos mais sangrentos. Mas a Escola do Mijo e Merda, se eu puder chamá-la assim, me parece colocar muita esperança mal direcionada na efetividade política da regressão infantil. A rebelião de alguém com dois anos de idade não é páreo para o poder global.

Uma coisa sobre o “belo” é que, como critério, ele não se limita à arte. A natureza conta. As mercadorias também. É claro que você está certo se perguntar: “belo” pela definição de quem? Mas se não quisermos terminar de novo no beco sem saída das identidades políticas, esta crítica é insuficiente. Não é porque eu sou branca, ou mulher, ou condicionada por imagens da mídia de massas, que eu acho algo belo, mas porque, dadas estas identidades contextualizantes – bem como minha reação muito ambivalente e sobredeterminada a elas – algo fora de mim me afeta. Meus sentidos são afetados. Isto é experiência estética. Kant, como você sabe, a descreveu como interesse desinteressado. Mas talvez hoje, se o objeto de arte burguês não precisa mais ser a prova dos nove para a experiência do belo, esta distinção precise de modificações. Kant se referia ao fato de que o desejo que a “arte” desperta em nós não tem agenda, não tem um objetivo instrumental. Nós nos contentamos simplesmente de contemplar o belo por si mesmo, não por um propósito autointeressado. Talvez hoje nós pudéssemos dizer que o belo é a experiência da realidade material como algo que resiste à instrumentalização. Não importa se esta realidade material se chama arte ou não. Poderia ser a experiência de qualquer objeto cultural – ou uma pessoa, ou um aspecto da natureza. Talvez inspire amor ao invés de desinteresse, paixão ao invés de contemplação – ou eu estou parecendo muito entusiasmada?

Você pergunta por que a estética é importante para mim hoje e o que está em jogo em sua definição. Isso nos leva de volta centralmente à questão da política. A estética para mim é fundamentalmente experiência cognitiva. É como o corpo sente a realidade, e digo isto num sentido animalesco, até biológico. Eu sei que é absolutamente impróprio dizer, mas esta experiência corporal não é, sempre, já mediada culturalmente. Dizer isto vai de encontro a toda a ciência recebida na academia hoje, mas eu não posso negar minha própria experiência. Desde que posso me lembrar, meu senso crítico foi nutrido por sensações corporais – músculos tensos, pés suados, sapatos apertados, respiração apertada, segurar a vontade de rir – ou de gritar. Não me sentir bem na minha pele foi meu jeito de criticar a definição que a minha cultura dava à situação. Significados culturais são corporalmente sentidos como errados. Simplesmente errados. De que outra forma as pessoas são capazes de protesto social? Se nós somos de fato, sempre, já produzidos por nossas respectivas culturas, como poderia vir a nossas mentes resistir a elas? Este é o ponto de Adorno quando ele fala da solidariedade somática que nós sentimos com vítimas da violência socialmente organizada, mesmo quando esta violência é justificada nos próprios termos da nossa cultura. Então eu quero dizer que estética é a forma de cognição crítica do corpo, e que este conhecimento sensorial pode e deve ser politicamente confiável. É empatia ao invés de simpatia, porque é capaz de produzir solidariedade com quem não é parte do nosso próprio grupo, que não compartilha nossa identidade coletiva. Quero dizer que a estética expõe a “razão” como o modo que o poder tem para defender sua própria perpetuação. Quando você fala de obras estéticas operando em algum tipo de nível pré-simbólico, é isto o que eu tenho em mente. Mas não é exatamente “pré-político”. O problema é que uma grande parte do que passa por experiência “estética” mascara a realidade material ao invés de abri-la para nossa percepção crítica.

GK: Isso se relaciona à questão de como alguém pode diferenciar as reivindicações epistemológicas da obra de “arte” do conceito mais amplo de estética que você emprega. Um estudo de caso interessante a este respeito é o Visible Human Project (VHP) do National Institute of Health (NIH). O VHP é um programa da National Library of Medicine para construir um registro gráfico completo do corpo humano masculino e feminino, um tipo de Gray’s Anatomy para a era digital. A fim de montar este registro, pegaram o corpo de um assassino executado, chamado Joseph Paul Jernigan, congelaram, e então o cortaram em 1871 fatias com um bisturi a laser. Cada fatia, então, foi digitalizada e inserida num programa gráfico para produzir um tour virtual de dentro do corpo humano. Segmentos do projeto estão no website do NIH por algum tempo, e estão vendendo a versão em CD-ROM. O que eu achei particularmente interessante foi a resposta a este projeto nas comunidades de arte e design. Um escritor da ID [International Design Magazine] dá um verniz filosófico ao VHP (“…beleza e realismo hipnotizantes… A morte nunca foi tão bela”), descrevendo o interior do crânio de Jernigan como “uma catedral quieta cuja congregação e clérigo foram removidas, embora o sagrado se mantenha”.[5] Isto sintetiza para mim a instrumentalidade da própria estética, a qual exige de nós a repetição da execução de Jernigan, ao abstrair a imagem de seu corpo das condições de sua vida. Quando vemos seu cadáver nós não devemos questionar sobre quem ele era, como ele veio a morrer, e o que significa para o Estado tirar a vida de um homem. Ao contrário, sua morte como um sujeito empírico e específico foi a pré-condição para sua elevação ao status de um evento estético que vai nos colocar em contato com questões universais da identidade espiritual do homem. A estética demanda um tipo de amnésia do objeto; nós devemos nos esquecer de onde ele veio. Ao invés de uma consideração aberta do prazer visual ou do belo, esta me parece uma consideração bem restritiva. Eu acho que tenho um sentimento similar sobre algumas das questões que são levantadas sobre a arte ostensivamente didática dos anos 80 e início dos anos 90, a qual reduz a discussão da estética à simples oposição mente/corpo, análise/prazer. Esta resposta subestima a extensão na qual muitas das “más” obras carregadas de texto dos anos 80 forneceram suas próprias formas de prazer (se podemos tratar retrospectivamente os pôsteres da URSS revolucionária como obras de arte “belas”, por que não podemos achar beleza, ou pelo menos prazer visual, na obra de Barbara Kruger, por exemplo?). E segundo, subestima a extensão em que obras mais recentes são capazes de ser elas mesmas bastante didáticas. As características do didatismo ou da ambiguidade não estão simplesmente “na” composição formal da obra. Elas são produzidas também na nossa leitura da obra através de seu posicionamento discursivo por críticos, galerias, afirmações de artistas etc. Eu acho que algumas obras que abraçam ostensivamente a complexidade e o prazer visual são redutivas e didáticas precisamente porque elas me pedem para suprimir forçosamente associações culturais ou políticas particulares que eu possa ter com uma dada imagem ou material a fim de alcançar a resposta propriamente “ambígua” (ou seja, não referencial).

SB-M: Poderia se fazer uma comparação interessante entre interpretações críticas das imagens do corpo de Jernigan e das do fotógrafo Robert Mapplethorpe. No caso de Jernigan, o escritor que você cita parece querer afirmar que o fato de que o cadáver humano é um objeto social – sobretudo, o fato de que foi produzido por uma execução estatal – está subordinado à sua beleza como arte, quando segmentado em centenas de imagens em corte transversal. Isto cria uma hierarquia de categorias dos objetos sociais, com a arte no ápice. Mapplethorpe, por outro lado, perturba os limites entre objetos sociais, precisamente sujeitando-os a uniformidades de estilo estético (formalismo, abstração), e o resultado é que fica impossível para o/a observador/a se sentir seguro/a de que o que ele/ela está vendo é arte. Arte, pornografia, imagem publicitária, fotografia de moda, retratos de celebridades – todas essas diferenças de categoria são chacoalhadas em sua obra. Elas não são visivelmente mantidas à parte, e nesse sentido são uma representação precisa da verdade desses objetos sociais. Barbara Kruger toma o mesmo princípio (a perturbação dos limites entre arte-imagem, propaganda-imagem, pornô-imagem) e o usa para fazer afirmações políticas poderosas. Eu adoro sua obra. E concordo com você, a obra dela tem beleza. Mas este elemento de beleza engrandece o impacto político das imagens, ao invés de substituí-lo.

É claro, a reivindicação persistente de novidade não é por si própria nada de novo. A modernidade é definida por isto. Mas tanto do que se chama de pós-moderno se satisfaz num cinismo político que modernistas não compartilharam. É uma enorme diferença. Lembra quando Christopher Jencks escreveu sobre o “momento fundante” da pós-modernidade, a dinamitação de um projeto habitacional, um conjunto de prédios gigantescos, construído no espírito modernista, utópico, mas que, de acordo com Jencks, fora um fracasso? É claro, ele está certo de que estes projetos maciços não produziram a utopia social que deveriam. Mas é culpa do concreto armado ou dos interiores brancos ou do número de andares? Isto seria culpar a arquitetura pela falha de um sistema social em que a pobreza é endêmica. Recentemente me perguntaram “você não acha que a modernidade é coisa de homens brancos?” Fora o fato de que eu gosto de paredes brancas e muito vidro, eu achei uma questão notável. Considerando que a era da modernidade (digamos, 1860 até hoje) nos deu o fim da escravidão, a emancipação das mulheres, a possibilidade de mulheres e negros/as de conseguir um emprego decente etc. – eu simplesmente não posso concordar.

GK: Não é a existência de conhecimento somático (ou da experiência do prazer visual ou do belo) que eu questionaria, mas o modo no qual este fato fisiológico é socialmente produzido. Acho que sua aproximação da estética é importante precisamente porque reconhece as condições sociais que constroem diferentemente as possibilidades ou horizontes da experiência somática em primeiro lugar. Assim, não é só um corpo “universal” tendo uma experiência estética universal (à la Clive Barker ou Roger Fry) que está em jogo nos seus escritos, mas o corpo dentro do espaço socialmente específico da cidade do capitalismo tardio.

SB-M: É claro, é verdade, mas as diferenças não são absolutas. Tome diferenças de classe, por exemplo. Do ponto de vista do “mundo dos sonhos”, as fantasmagorias de parques temáticos ou feiras mundiais, shoppings ou imagens de publicidade são feitas para serem acessíveis às massas e não só às pessoas ricas. Do lado da catástrofe, a experiência de choque não é limitada a quem trabalha na fábrica. Ruas da cidade e estradas de seis pistas na hora do rush são bons exemplos do choque catastrófico. Acidentes de transporte são outro exemplo. Quer dizer, se você senta na classe econômica bebendo uma cerveja ou na frente do avião bebericando champanhe de graça, o choque de uma explosão ou falha mecânica é mais ou menos o mesmo, não é? E tem choques peculiares às classes altas, como a quebra do mercado de ações…

GK: Isto me leva a uma segunda questão: nós temos que aceitar uma escolha entre um domínio cognitivo que assimila todas as formas de diferença em um eu unitário (estou pensando aqui no comentário de Adorno sobre a “razão predatória” como a “barriga tornada mente”)[6] ou o sujeito infeliz e sobrecarregado da fantasmagoria de Benjamin? Cada um desses modos de experiência é privatizado de um jeito. Em seu ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Benjamin escreve sobre Proust:

… fica por conta do acaso, se cada indivíduo adquire ou não uma imagem de si mesmo, e se pode ou não se apossar de sua própria experiência. Não é de modo algum evidente este depender do acaso. As inquietações de nossa vida interior não têm, por natureza, este caráter irremediavelmente privado. Elas só o adquirem depois que se reduziram as chances dos fatos exteriores serem assimilados à nossa experiência.[7]

Tomo Benjamin aqui para sugerir que o efeito da cultura moderna, a fantasmagoria, é quebrar as conexões entre autoconhecimento e conhecimento social. Tem o efeito de “paralisar a imaginação [social]” do espectador.[8] Em oposição ao conceito convencional de estética, baseado no domínio cognitivo de “outros”, talvez Benjamin esteja sugerindo uma construção dialógica do eu via troca social. É aqui onde sua obra de novo fornece uma nova dimensão importante sobre a estética, porque estende a ideia de coletivo não como um ideal utópico, mas como um objetivo potencialmente realizável. Benjamin desafia o conceito tradicional de estética sugerindo que a utopia do “senso comum” que é constantemente deferida pela estética pode ser realizada através de uma transformação social e política.[9] Isto, é claro, se relaciona à sua discussão (no ensaio “Estética e anestética”) do comentário de Benjamin sobre a “estetização da política” e o modo pelo qual o Fascismo oferece resoluções “simbólicas” falsas (tal como a identidade fictícia de massa) a conflitos sociais reais.[10] Eu argumentaria, e acho que estou simplesmente concordando com você, que a capacidade para uma experiência estética é comum a todos, mas que a habilidade que nós temos de regular esta experiência (quem pode comprar um veículo utilitário esportivo e estar “acima de tudo isso”?) é social.

SB-M: O que estou dizendo é que, mesmo que não haja um senso comum universal de “beleza”, toda cognição tem, necessariamente, um componente sensorial ou “estético” – e este é precisamente o componente sobre o qual o poder da crítica repousa. O poder crítico da arte, ou qualquer forma cultural, pode não ser percebido universalmente, mas se é percebido, te acerta no estômago. Agora, esta experiência somática resiste à razão predatória precisamente porque não pode ser digerida, engolida pela mente. Se a experiência deixa um resíduo não digerível que não vai embora, isto é alimento para a cognição crítica. Mas, de novo, por que a “arte” é privilegiada como objeto de tal experiência? Realmente não sei mais o que a palavra significa. Estética, porém, me parece mais importante do que nunca. “Estética depois da arte”, poderia chamá-la.

GK: Você poderia falar um pouco mais sobre o que consistiria uma “estética depois da arte”? Isto se refere à ideia de prática cultural que se engaja não com instâncias autônomas ou exemplares de alta arte, mas com a cultura em geral? Nós desistimos de tudo que vale a pena ao abandonar a distinção entre “arte” e “cultura”? Que tipo de conhecimento poderia produzir uma “estética depois da arte”? Haveria limites disciplinares?

SB-M: Quero dizer que se a estética fosse libertada da “arte” como seu objeto, poderia entrar em si mesma como uma forma de cognição – não uma disciplina, não só outro jeito de fazer “estudos culturais”, mas como uma prática cognitiva auto-reflexiva. A estética se tornaria antropologia no sentido filosófico, e uma brutalmente materialista. Significaria, primeiro, voltar ao significado original do termo asthitikos, “perceptivo pelo sentir”. Não estou de jeito nenhum advogando por um novo romantismo – não do sentir romântico, mas algo mais parecido com sentir o cheiro do perigo. Este é um exemplo de cognição somática no seu melhor potencial crítico. Em certo sentido, este é um retorno ao empirismo ingênuo, mas é claro que não se pode voltar atrás. Se a concepção de “estética” aqui é pré-kantiana e pré-hegeliana, não importa que, como antropologia filosófica, seja pré-crítica. E leva a história em consideração, entendendo que a própria experiência somática mudou, dadas as próteses de máquinas e agora da mídia eletrônica. Apenas neste sentido o empirismo do século XVIII não é uma descrição adequada à cognição corporal hoje.

É claro, você vai protestar, que não existe possibilidade de uma antropologia filosófica – corpos são muito diferentes, sexualmente, etnicamente, em termos de classe. Eu não discordaria que as diferenças importam em certos contextos. Mas se a questão é de sentir o cheiro do perigo, estas diferenças não são cruciais. Se uma casa está queimando, você grita “todo mundo para fora!”. Agora, mesmo se algumas pessoas argumentam que (em certas culturas) mulheres toleram mais dor física do que homens, seria absurdo sugerir que elas fiquem no prédio queimando. Você grita “todo mundo para fora” e você realmente quer dizer isto. Você não faz uma lista de verificação da “diferença” antes de gritar a plenos pulmões. O corpo como órgão cognitivo pode, pelo menos dado o mesmo ambiente físico, ser descrito com uma boa quantidade de universalismo. Isto é verdade para o cérebro também. Gosto de pensar nele como parte do corpo, e não como um Seele ou Geist descorporificado.

Nós precisamos de um pouco de empirismo vulgar – Plumpes Denken,[11] como Brecht costumava chamar! E a “estética” torna-se crucial neste contexto. Significaria acabar com o privilégio da linguagem escrita sobre, digamos, as linguagens miméticas da expressão facial e dos gestos corporais, as linguagens das imagens. E o texto, também, poderia ser visto como objeto material. Eu vi recentemente algumas representações de textos em espaço tridimensional produzidas por computador que são fascinantes, onde você realmente pode entrar em textos particulares – no caso eram dois manifestos, um da historiadora e crítica Donna Haraway e um do Karl Marx – e intuir seu caminho ao redor das palavras, por todo o caminho. Você pode fazer o “I” tão grande que pode circular ao seu redor como um cachorro rodeando uma árvore. Encontrar o “I” [eu] assim é uma experiência filosófica notável – uma experiência propriamente “estética”.

No contexto de uma noção transformada de estética, o trabalho dos “artistas” também se altera. Ao invés de criar “arte”, o objetivo seria prover em suas representações, de qualquer tipo, uma experiência somática que seja auto-reflexiva – crítica, no sentido filosófico. Mapplethorpe faz isto na sua perturbação dos limites entre arte, propaganda e pornografia. Nós simplesmente não podemos assimilar toda sua obra sob nenhuma convenção da história da arte – exceto aquela puramente formalista (o que, dado o fato de que se está olhando para um punho enfiado num ânus, não é tudo o que há para a experiência da imagem). Você fica se perguntando como se sente (o fistador e o fistado). E então te ocorre uma revelação notável. Você percebe que através do próprio âmago do corpo humano, de uma ponta à outra, há um buraco. O centro do ser humano é um conduíte para o mundo de fora. Isto é notável. É também uma afirmação da antropologia universal – gay e hétero, masculina e feminina, negra e branca. Como as pessoas sentem o buraco, é claro, varia.

Eu li a série de comentários transformadores de Kobena Mercer sobre as fotografias produzidas por Mapplethorpe de nus masculinos, gays e negros. Agora, o que Mapplethorpe dá a seu espectador é uma experiência daqueles corpos, e como Mercer admite na segunda versão de sua crítica, é uma experiência inegavelmente erótica. O espectador ou espectadora individual é conduzido a pensar através de sua própria reação individual, não meramente ao corpo nu de um homem negro, mas a reação ao experienciar aquele corpo como erótico – independente da identidade sexual ou racial que o indivíduo professe. Então a direção cognitiva se desloca para o espectador, que tem que chegar a um acordo com os sentimentos eróticos que ela ou ele têm, e isso é propriamente experiência estética na minha visão.

Nós podemos tomar outro exemplo, a famosa fotografia do próprio Mapplethorpe com um chicote no cu, enquanto ele contorce sua cabeça para trás para olhar num espelho e tirar a fotografia (e olhar para nós olhando para o seu cu). Se levarmos seriamente o fato de que isto é um autorretrato de um fotógrafo, percebemos que ele nos deu não só uma imagem descontroladamente escandalosa, mas uma nova metáfora: a câmera, não mais como olho, mas como ânus. Desde os anos 1920 e Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov, é o olho que tem sido o modelo para a câmera. Isto implica o prazer e a promiscuidade visual da câmera. Mas o ânus é uma abertura de controle. Hoje, em nossa cultura esmagadoramente visual, a câmera é só isto, um instrumento de controle – não apenas em termos de vigilância, mas também em termos de reconhecimento social. As pessoas que contam na sociedade são as pessoas cujas imagens você reconhece. E o fotógrafo sabe disso – Mapplethorpe certamente o sabia.

GK: Você poderia falar um pouco sobre sua resposta ao que pode ser chamada de crítica psicanalista da estética? Isto tende a girar em torno do argumento de que a estética confia num conceito Iluminista do sujeito como (real ou potencialmente) completo, integrado e perfectível. Uma crítica similar emerge da obra de Foucault. A crença que a modernidade fragmentou a natureza humana (por exemplo, Schiller e a “educação estética”) assume a existência de alguma forma orgânica ou completa a qual podemos retornar, e da qual fomos separados.

SB-M: É crucialmente significante para qualquer antropologia filosófica contemporânea a concepção de Freud de Nachträglichkeit, ou efeito a posteriori.[12] É uma causalidade que funciona para trás no tempo, e esta é uma descoberta científica notável. Por esta razão, nenhuma tristeza humana é redutível à experiência infantil. Todo trauma original deve encontrar uma experiência presente para sua expressão contínua. Ao mesmo tempo, repetição nunca é mera repetição. Sempre há algo novo na experiência também – é por isso que é possível se curar de um trauma. Mas curado não quer dizer completo.[13] Só quer dizer ser capaz de responder às possibilidades presentes de felicidade. E isto não é pedir muito da vida, ou das relações sociais que a estruturam.


Notas
[1] Mark Van PROYEN, “A Conversation with Dave Hickey, Critic”, Artweek 27, n.4 (Abril, 1996), p. 14. Hickey afirma: “Estou interessado no belo no que ele tem de mais radical. Estou interessado em imagens como as de Robert Mapplethorpe ou de Hannah Wilke – imagens nas quais as significações culturais do conteúdo e as significações culturais da apresentação estão tão violentamente em desacordo umas com as outras que você tem que tomar decisões morais – que sua relação com a obra é moral e política, num sentido literal, físico.” Ver também Dave HICKEY, The Invisible Dragon: Four Essays on Beauty (Los Angeles: Art Issues Press, 1993); Wendy STEINER, The Scandal of Pleasure (Chicago: University of Chicago Press, 1995); e “‘B’ Is for Beauty”, edição especial de New Art Examiner 21, n.8 (Abril, 1994).

[2] Diferentemente do inglês, língua original da entrevista, no português há distinção de gênero em quase todos os substantivos, em geral não havendo formas neutras de tratamento. Por tradição, usa-se o masculino para generalizar (ou seja, fala-se do “sujeito”, do “espectador”, do “artista”), desconsiderando a presença feminina nestes espaços. No entanto, mais adiante, a entrevistada problematiza esta questão em sua própria língua. Assim, onde possível, a linguagem em português foi adaptada para não excluir as mulheres. Onde uma linguagem inclusiva romperia o ritmo ou poderia mudar o sentido em que as coisas foram ditas, foi mantida a generalização tradicional, apesar dos problemas inerentes à reprodução de uma linguagem claramente sexista. (N. da T.)

[3] Ver, da autora: “Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin” (1992), in Tadeu CAPISTRANO (org.), Benjamin e a obra de arte – técnica, imagem, percepção (Rio de Janeiro, Contraponto, 2012), p.155-204; A tela do cinema como prótese de percepção (Desterro, Ed. Cultura e Barbárie, 2012); “The City as Dreamworld and Catastrophe”, in October 73 (MIT Press, verão de 1995), p. 3-26; “Envisioning Capital: Political Economy on Display”, in Visual Display: Culture beyond Appearances, ed. Lynne Cooke and Peter Wollen (Seattle: Bay Press, 1995), p.111-141; e “Visual Culture Questionnaire”, in October 77 (MIT Press, verão de 1996), p. 29. (N. da E.)

[4] Walter BENJAMIN. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1935), in Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura (São Paulo, Brasiliense, 1985) p. 165-196. Para a tradução da última versão, de 1939, ver Tadeu CAPISTRANO (org.), Benjamin e a obra de arte, op. cit., p. 9-40.

[5] John HOCKENBERRY, “Corpus Delecti”, I.D. Mazagine, Março/Abril, 1996, p.45.

[6] Theodor ADORNO, Negative Dialectics (New York: Continuum, 1995), p. 22-23.

[7] Walter BENJAMIN, “Some Motifs in Baudelaire”, in Charles Baudelaire: A Lyric Poet in the Era of High Capitalism, trans. Harry Zohn (London: Verso, 1985), p.112. Em português: “Sobre alguns temas em Baudelaire”, in Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo – Obras escolhidas III, trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista (São Paulo, Brasiliense, 1995), p. 106.

[8] Ibid.

[9] Ver Richard B. WOLFF, An Old-Spelling, Critical Edition of Shaftesbury’s Letter Concerning Enthusiasm and Sensus Communis: An Essay on the Freedom of Wit and Humor (New York: Garland, 1988).

[10] Susan BUCK-MORSS. “Estética e anestética…”, op. cit., p.156.

[11] Em português: “pensamento bruto”, “desajeitado” ou “grosseiro”.  Para a tradução e o uso do Plumpes Denken de Brecht e Benjamin como crítica tanto ao marxismo acadêmico dos grandes nomes da Escola de Frankfurt quanto ao marxismo vulgar dos Partidos Comunistas, ver Leandro KONDER, “A poesia de Brecht e a história”, disponível online:  <www.iea.usp.br/publicacoes/textos/konderbrecht.pdf>, p. 19. (N. da T.)

[12] Para o desenvolvimento da noção, ver Sigmund FREUD, “História de uma neurose infantil (‘O homem dos lobos’, 1918 [1914])”, in Obras completas volume 14 (1917-1920), trad. Paulo César de Souza (São Paulo, Cia. das Letras, 2010), p. 13-160. Aí, como aqui, opta-se por traduzir Nachträglichkeit alternadamente por “efeito a posteriori” e “efeito posterior”, de acordo com a tradução em língua inglesa, deferred action. Outras possibilidades seriam “efeito retroativo”, “posterioridade” – seguindo outra tradução inglesa, afterwardsness – e “só-depois” – segundo a tradução francesa (aprés-coup). (N. da T.).

[13] No original, esta frase consiste numa espécie de jogo, pautado na proximidade sonora das palavras – “healed doesn’t mean whole” –, que não corresponde exatamente à aliteração empregada nesta versão para o português, e em cuja eficácia sensória repousa o argumento. (N. da T.)


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