Documentos do Coletivo Autônomo de Mediadores (2013) #1

No-17

A declaração e o relato aqui apresentados são resultado da auto-organização política das trabalhadoras e trabalhadores do setor educativo da 9ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul. A declaração foi distribuída como um panfleto junto à intervenção dos mediadores na mostra. Os dois documentos foram publicados originalmente no blog do grupo <https://coletivoam.wordpress.com>.

Declaração

Coletivo Autônomo de Mediadores

Nós, do Coletivo Autônomo de Mediadores, composto por trabalhadores da 9ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Porto Alegre, viemos declarar nosso descontentamento com relação a episódios ocorridos durante o exercício de nossas atividades. Como parte do núcleo de mediação atuante nesta mostra de arte, nosso trabalho é receber, acolher e dialogar com o público agendado e espontâneo que adentra os espaços expositivos.

Os episódios descritos a seguir evidenciam arbitrariedades no tocante ao uso desses espaços, expressas por práticas institucionais que restringem o acesso do público visitante segundo critérios discriminatórios e segregatórios. Julgamos importante declarar nosso posicionamento e esclarecer que não compactuamos com tais práticas, visto que a mediação se fundamenta no respeito a todo e qualquer tipo de público que chega aos espaços expositivos – independente de gênero, classe, etnia ou idade.

  1. No dia 04 de outubro de 2013, foi realizado um jantar de caráter privado dentro da sala Ado Malagoli, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS, tendo como justificativa a obtenção de fundos para futuras aquisições de obras de arte para a instituição pública. Durante o evento, foram acesas velas sobre as mesas localizadas ao lado de uma obra construída com 4.800 peças em papelão e que ocupa, durante o período da mostra, a parte central do segundo andar da referida instituição. A organização do jantar foi iniciada antes do fechamento do museu, que ocorre às 19h – de modo que o espaço ainda estava aberto para visitação e, portanto, os mediadores ainda estavam em horário de trabalho. É importante frisar que membros da Fundação Bienal do Mercosul estavam presentes no jantar, e essa não informou os mediadores e supervisores que trabalhavam no MARGS sobre o evento. Tal fato dificultou o acesso do público a algumas obras expostas, além de interferir no trabalho educativo no espaço do museu. Às 18h45min já havia mesas e cadeiras posicionadas ao lado da obra do artista norte-americano Tony Smith. Outra obra exposta no MARGS estava interditada devido às luzes acesas e ao plástico com o qual o chão foi forrado. Entretanto, no dia seguinte ao evento, os mediadores que trabalham no turno da manhã no museu do Estado encontraram cera de vela, manchas de comida e cacos de acrílico sobre o carpete.
  2. Entendemos que a organização de um jantar no meio do espaço expositivo é um desrespeito às próprias normas estabelecidas pela 9ª Bienal do Mercosul e pelo MARGS, uma vez que, para garantir a conservação das obras, não é permitido consumir alimentos e bebidas nas salas onde estas estão expostas. Diante de tal fato, soam incoerentes as recomendações e cobranças de preservação das obras – dirigidas tanto aos mediadores quanto ao público.
  3. Nos dias posteriores ao jantar, assim como nos dias seguintes à publicação de uma carta que relatava o acontecido, houve constrangimentos e perseguições aos mediadores por parte da direção do MARGS, dentro e fora do ambiente de trabalho.
  4. Entendemos que houve omissão por parte da Fundação Bienal quanto aos ocorridos.
  5. No dia 17 de outubro de 2013, foi realizada uma sessão fotográfica para um editorial de moda em horário de visitação pública nos espaços expositivos da Praça da Alfândega da 9ª Bienal do Mercosul, em que estavam ausentes o cuidado e a conduta adequados à conservação das obras. Condutas essas que são rigorosamente exigidas do público visitante, a quem foi impossibilitado, nesta ocasião, o acesso a parte do espaço expositivo.
  6. No dia 24 de outubro de 2013, foi realizada uma performance no Santander Cultural com ampla divulgação de entrada gratuita e solicitação de chegada antecipada devido ao número limitado de lugares. No entanto, puderam assistir somente algumas pessoas que, minutos antes do início do evento, foram anunciadas pela equipe de produção como presentes em uma lista até então desconhecida tanto pelo público quanto pela equipe de mediação que aguardava no local em fila formada conforme ordem de chegada. Cabe salientar que os nomes na lista estavam relacionados a uma determinada condição social de distinção, status e privilégio, bem como a vínculos pessoais com figuras da Fundação Bienal.
  7. Quanto ao tratamento dos demais setores da Fundação Bienal para com os mediadores, existem diversas situações corriqueiras que caracterizam a diminuição da função e do trabalho de mediação e a própria condição de sujeito por parte dos mediadores. Como exemplificação dessa circunstância, na referida performance realizada no Santander Cultural, houve desvio de função de nosso trabalho. Isso porque os mediadores foram convidados pelo núcleo educativo (setor encarregado da equipe de mediação) para trabalhar na mediação da performance. Contudo, orientados por outro setor e com a discordância do próprio núcleo educativo, foram levados a realizar atividades que não correspondem ao trabalho de mediação, trabalhando como ascensoristas e recepcionistas.
  8. Além da não observância e reflexão de nossa real função no espaço expositivo, são recorrentes as interrupções abusivas e situações de constrangimento durante a realização das mediações por parte dos outros setores da Fundação Bienal.
  9. Ainda no dia 24, no espaço expositivo do Memorial do Rio Grande do Sul, um sujeito, que se identifica como “queer” (sem gênero ou sexualidade definidos), ao utilizar o banheiro feminino para se maquiar, foi convidado a se retirar do ambiente por medida de “segurança”, de maneira agressiva. A medida é representativa de assédio moral, psicológico e abuso de autoridade, pois foi seguida de empurrões até a saída do espaço expositivo, conforme consta em registro audiovisual. A violência que aconteceu nessa situação gerou ao visitante um mal-estar, exposição indevida e exclusão das dependências da 9º Bienal do Mercosul. Isso reflete restrições segregatícias impostas a diferentes públicos, a partir das questões de gênero e sexualidade dentro dos espaços expositivos, bem como a negligência e a omissão da Fundação Bienal em relação a sua inclusão.
  10. Constatamos também a insuficiente preparação para a execução de audiodescrição em caso de visitas de grupos com deficiência visual, salientando nossa preocupação com a qualidade da mediação a esses grupos. Ademais, notamos a falta de estruturas que possibilitem o melhor acesso por esses grupos aos espaços expositivos, devido à ausência de descrições das obras em braile, assim como de materiais táteis (os quais acabaram sendo pensados e elaborados pelo setor de mediação do Santander Cultural). A acessibilidade para cadeirantes é mínima, como também o é para surdos, devido ao escasso número de mediadores intérpretes de Libras (língua brasileira de sinais).

 

Frente a estes modos de relação que agrediram e agridem em diversas instâncias o público das exposições e a equipe de mediação da 9ª Bienal, nós do Coletivo Autônomo de Mediadores declaramos nosso repúdio e nossa total dissociação dessas práticas que estabelecem tratamentos diferenciados e elitistas e que favorecem aqueles que possuem maior poder aquisitivo ou status social. É inadmissível que haja qualquer tipo de distinção de público nesses espaços, especialmente porque se trata de uma exposição que recebe apoio financeiro oriundo de dinheiro público (Lei no.13,490/10 – Pró-Cultura/RS) e mecanismos de incentivos fiscais (Lei n° 8313/91 – Lei Federal de Incentivo à Cultura) cujos artigos iniciais já deixam claras as exigências para concessão de incentivo:

Art 2°, § 1o Os incentivos criados por esta Lei somente serão concedidos a projetos culturais cuja exibição, utilização e circulação dos bens culturais deles resultantes sejam abertas, sem distinção, a qualquer pessoa, se gratuitas, e a público pagante, se cobrado ingresso.

§ 2o É vedada a concessão de incentivo a obras, produtos, eventos ou outros decorrentes, destinados ou circunscritos a coleções particulares ou circuitos privados que estabeleçam limitações de acesso.

É por acreditarmos em uma ética e uma política da mediação, independente das premissas elitistas e segregatórias das instituições, que somos contra ações que (a) inferiorizam ou desconsideram qualquer pessoa em qualquer espaço cultural e (b) são irresponsáveis no cuidado com o patrimônio público (do qual fazem parte os museus mencionados). Acreditamos que a arte não deva ser um ambiente restrito e socialmente privilegiado – reproduzindo em nível simbólico a desigualdade social –, mas sim de acesso a todos, democrático, popular e universal. Defendemos uma relação sem distinção da frequentação, acesso e circulação dos espaços expositivos. Reivindicamos a eliminação de critérios arbitrários no acolhimento de visitantes, bem como em relação aos educadores que trabalham nos espaços da 9ª Bienal do Mercosul.

Manifestamos nosso repúdio a situações de exclusão e segregação de públicos, bem como à má condição e vulnerabilidade do educador trabalhador da equipe de mediação, hostilizado em diversas situações.

COLETIVO AUTÔNOMO DE MEDIADORES

Porto Alegre, novembro de 2013.


 


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