Editorial | Dazibao Nº1

CAPA

大 [da] um homem de braços abertos;
字 [zi] um bebe/criança/filho abrigado sob um telhado;
報 [bao] uma mão castigando um homem ajoelhado acorrentado.

No primeiro ideograma o corpo se estende para estabelecer uma nova relação de proporção consigo mesmo e o mundo, denotando assim grandeza e magnitude.

No segundo, pelo contrário, envolvido e dependente, sua condição é a do objeto frágil ainda desprovido de completa autonomia. Sobre sua cabeça, se depõe não somente o signo da protecção, mas também o da própria autoridade, ou seja, o peso de um teto que não somente cobre e protege, como também aprisiona e molda. Trata-se, em última instância, da assimilação da linguagem, do peso da palavra, que, passando pelas figuras do pai, do professor e do Estado, vem a determinar o lugar do corpo no interior da lógica da família (casa), do pensamento (escola) e da vida social (lei). É a partir desse sentido que podemos compreender a passagem da acepção antiga do ideograma 大 (antes relacionada à ideia de cuidar, zelar, tratar) para seu sentido moderno (hoje definido como palavra, caractere, letra, ou simplesmente, ideograma) como uma metáfora para a própria perda de substância do sujeito frente às instituições da família, do ensino e do Estado. Em outras palavras, uma vez soterrado sobre a autoridade da palavra, nada resta ao sujeito senão compartilhar da condição mesma dessa, ou seja, ser corpo sem espessura gravado à pressão sobre uma superfície plana.

Tal relação se torna mais clara quando observamos a última figura. Nela, enquanto nas algemas e no punho observamos a instância concreta e objetiva da punição imputada, na genuflexão do corpo encontramos o sinal explícito da sujeição do sujeito ao poder abstracto da ordem e da lei. Uma vez condenado por seus crimes, o réu se prostra à injunção fatal da letra, reconhecendo, assim, em seu próprio corpo, as palavras de sua sentença. Unem-se, deste modo, no ideograma, dois sentidos principais: primeiro, o de retribuição, vingança, punição; e, segundo, o de anúncio, informe, ou, como se observará em seu uso moderno, simplesmente jornal. Torna-se patente, portanto, a indissociável relação estabelecida entre sentença e castigo, palavra e mortificação, crítica e punição, ou, como melhor diríamos, juízo e ação.

Oriundo dos tempos da China imperial, por 大字報 (dazibao, ou “informe de grandes caracteres”, se traduzido literalmente) compreende-se a prática de afixação de mensagens em vias públicas para serem lidas por passantes. Tal definição incluía não somente a disposição de informativos, jornais ou cartazes em forma de painel nas paredes, como também a inscrição dos crimes de um condenado na estrutura de madeira que o mantinha preso no momento de sua exposição em praça pública.

Reinserido no contexto da Revolução Chinesa (1949) e, sobretudo durante a Revolução Cultural (1966-76), o dazibao se converteria num dos principais veículos de comunicação, crítica e debate do país. É notório neste período seu caráter potencialmente democrático e descentralizado, uma vez que, em tese, seu conteúdo se determinava mediante as intervenções espontâneas dos próprios cidadãos, que publicamente respondiam uns aos outros por meio de dazibaos. Na Europa, no mesmo período, o uso de dazibaos foi amplamente difundido nos meios universitários como reflexo da recepção local, descontextualizada, do maoísmo. A facilidade na importação de tal prática, pelo seu caráter “livre”, se deu, em parte, pelo fato de que na Europa os maoístas não se reportavam a um poder centralizado instituído, cujo aparato repressivo poderia se valer das informações democraticamente elaboradas no dazibao — como foi o caso da situação chinesa.

Contraditoriamente, tal prática passaria a ser reprimida pelo próprio Estado chinês por meio de medidas severas de restrição e controle, poucos anos depois de instituída a constituição de 1975, que garantia o dazibao como um dos “quatro grandes direitos” do cidadão. Assim, apesar de existirem até hoje, os dazibaos não mais apresentam a complexidade histórica observada até fins da década de 1970.

O nome desta revista não resulta de nenhuma pretensão positiva ou nostálgica quanto a algum tipo de resgate daquele espírito revolucionário, o que certamente incorreria num anacronismo. Não obstante, trata-se de, anacronismo maior, tencionar o peso semântico da palavra com as possibilidades da prática da crítica hoje. Reconhecendo nesta o mesmo estatuto ambivalente e paradoxal observado nos diferentes usos históricos do termo dazibao.


 


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