O museu Hélio Oiticica. Defesa contra seus admiradores # 2

O texto consiste na segunda parte de um artigo, “Museu Hélio Oiticica. Um mausoléu admirável”, publicado em Dazibao n.1. Ainda que se recomende a leitura das duas partes, cada uma delas apresenta, sob um eixo temático comum, argumentação autônoma.

“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “tal como ele propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. […] O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjulgá-la.” (Walter Benjamin, “Tese VI”, Sobre o Conceito de História, 1940).1

Função e desígnio

HÉLIO OITICICAmuseu é o mundo.2 De maneira autorreferente, a instituição bancário-cultural reporta-se ao museu (que é de sua propriedade)… mas também ao mundo (que, por analogia, também lhe pertenceria). Seria necessário, então, inquirir – já fora do ponto de vista bancário: de que museu se trata? Ou, antes: que mundo? Tomado em abstrato, o termo “mundo” faria, na expressão, o papel do “real”. Seria uma hipótese lógica. Seguida pela suposição de que “museu” definiria a circunscrição institucional da obra-de-arte. Mas a expressão – “museu é o mundo” – funciona, aqui, para além da mera articulação formal dos dois elementos. Ela subsume um movimento de superação interno. E Não de forma tácita. Aliás, enuncia em capitais: HÉLIO OITICICA. O nome do artista atua como legenda. Função-autor: “sua presença”, escreveu Michel Foucault em Que é um Autor? (1969), “é sempre funcional, na medida em que serve como meio de classificação”.3 No caso, a classificação força obrigatoriamente um vetor semântico, quer dizer, um sentido: superação da circunscrição institucional e da própria obra-de-arte (e do museu) pelo “real” (o mundo). Sentido que pode ser, colocado abstratamente, de maneira supra-histórica, desejável. Mas, no título da mostra, descontextualizada (e descontada a sua eloquência teatral), a expressão se subordina à função-autor – e não significa senão a sua autoridade.

Dispositivo autoral

“Chamarei literalmente de dispositivo”, (nos) diz Giorgio Agamben,

qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas as opiniões e os discursos.4

A categoria, diz Agamben, é fundamental para a compreensão do mecanismo político contemporâneo. Ou do mecanismo que garante a neutralização econômica da política. Mirem(os) as artes: o dispositivo principal daquilo a que se convencionou chamar arte contemporânea é a indivisível unidade biográfica do autor. O interceptador tácito dos gestos contemporâneos.5 Certamente não se trata mais daquele duplo do sujeito ocidental moderno – o sujeito centrado e individualizado do mundo burguês, “consciente de si mesmo e dos seus atos”, um tipo criado tardiamente na modernidade,

para alimentar a ilusão de totalidade que já havia se perdido no fim de uma sociedade totalmente regida pelas tradições […].6

Durante o período moderno a função-autor foi uma particularização da função-sujeito (funções póstumas, socialmente inventadas como compensação). Espiritismo corporativo: o dispositivo autoral que regula o atual ciclo histórico é uma espécie de reciclagem incorpórea e desterritorializada (quer dizer, circulante) da função-autor. Pois “o que define os dispositivos”, continua Agamben,

na atual fase do capitalismo é que estes não agem mais tanto pela produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação. […] O que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral.7

O autor talvez seja então o duplo da generalização fantasmática do sujeito, já que

[…] a impressão de que a categoria da subjetividade no nosso tempo vacila e perde consistência […] se trata, para ser preciso, não de um cancelamento ou de uma superação, mas de uma disseminação [da subjetividade] que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal.8

Disseminação e sujeição.9 Afinal, antes de tudo, a autoria é, em par com os princípios fictícios da era financeira do capitalismo, uma logomarca. Um cercamento que demarca o território virtual – quer dizer, absolutamente controlado – do copyright intelectual.

Tautologia

HÉLIO OITICICA – museu é o mundo. A operação realizada é simples, mas estratégica. Trata-se de um processo de convencimento. Querem convencer(-nos) de que a instituição dá voz ao artista. “Museu é o mundo”, Oiticica dixit. Talvez seja um procedimento dramatúrgico – baseado em fatos reais. Pois a frase foi, de fato, dita pela personagem. Numa situação determinada. Que foi esquecida. (Talvez apagada). A expressão, no caso, deixou de ser a reflexão sobre um processo – aquele da quebra do quadro, objeto de contemplação estética pura, em direção à “participação do espectador”, ou então, da galeria de arte em direção à favela.10 Tornou-se um axioma. Ou pior: um slogan. Cuja teleologia toma o partido (não enunciado) da instituição cultural-bancária (ou bancário-cultural), delimitando um teatro de operações… que talvez só possam ser financeiras.

Press Release

O sentido atribuído à superação do “museu” pelo “mundo” é auto-explicativo. Seria a superação da obra-de-arte contemplativa em direção à “proposição de comportamentos”. A supressão das barreiras que separam, em compartimentos estanques, arte e vida.

A exposição ‘Hélio Oiticica – Museu É o Mundo’ abre com uma série de ações e atividades imperdíveis. Artista consciente do próprio trabalho, Oiticica deixou um extenso legado não só pelas muitas obras referenciais, mas também por sua visão incomum sobre o papel do artista.

A atribuição de sentido é acompanhada por uma demonstração de vitalidade. Exposição massiva de objetos passíveis de serem tocados pelo público (Parangolés e Bólides). Proliferação de ambientes propositivos/sensoriais (Tropicália, Rhodislândia e Cosmococa). Exibição de Penetráveis espalhados por espaços públicos da cidade.

Aproximadamente 117 de suas obras, bastante contemporâneas e atuais em suas propostas, são exibidas nesta exposição, algumas delas espalhadas por parques e espaços da cidade de São Paulo.

Uma espécie de Antropofagia de mercado, que consiste num programa de consumo do outro: (re)encenar a ocupação do MAM-RJ pelos passistas da Mangueira em 1965, expurgando sua Alteridade. Com um convite.11

Na abertura 15 integrantes da escola de samba Mangueira realizam uma performance, vestindo os  ‘Parangolés’ de Oiticica. No mesmo horário, Jards Macalé e atores convidados do Teatro Oficina farão uma intervenção na obra ‘Rhodislândia’, exposta no segundo subsolo do instituto. Durante esses quase dois meses, você visita a exposição e aproveita uma série de eventos paralelos. Todas as atividades têm entrada franca.
(Site do evento).12

Anti-SAC

A toda hora somos abordados por alguém que nos dirige a palavra, de partidos políticos a firmas de sabão em pó, através da imprensa e do rádio, por meio da voz bajuladora dos meios de comunicação de massa, que ressoa sem cessar. Todos eles querem falar conosco, até mesmo nos tratando pelo nome; todos eles nos enchem a cabeça, para nos convencer de que o que oferecem é coisa nossa.13

Não se pode dizer que a instituição bancário-cultural tenha deixado de lado a dimensão da “participação” (como reforça o release), oriunda do debate artístico brasileiro dos anos 1960. Ou que não tenha seguido à risca as anotações do artista (como o catálogo faz questão de frisar). Ou ainda que tenha ignorado seus escritos teóricos (como pontuam as numerosas inserções textuais na parede – às quais o discurso dos curadores chama atenção). Seria a supressão do “museu” em favor do “mundo” a realização plena da promessa de transformação do “espectador” em “participador”? Abolição da autoria? Da obra-de-arte? Teoria e prática, fundidas na unidade sintética da práxis? Instauração do estado de “invenção total”? De tal maneira apresentado que “o experimental” – a que se referiu o artista num passado já remoto – se encontraria já realizado… Objetivos aparentemente dignos de se almejar. Aliás, dado o cenário de sua enunciação, de um bom-mocismo exasperante. (A exasperação causada pelo grau de irrealidade que se constata nos discursos sobre sua efetivação).

Mal-estar na participação

Mas estava tudo lá. Mesmo depois de apagado o incêndio que consumia a Obra. Uma demonstração de que tudo vai bem. De onde então o mal-estar? A impressão de que se via uma participação do espectador… pacificada. Ou pior: tratada como um mal e, portanto, curada. UPP na Tropicália? O procedimento curatorial, que envolve um cálculo (político) preciso, não dá margem para reclamações. E se arma contra a eventualidade de que uma voz dissonante se faça ouvir. Mesmo na hipótese de que a dissonância viesse das obras. Pois desloca a abordagem concreta da questão: da urgência histórica da participação (que fala de duas ausências: a ânsia do sujeito e a incompletude do objeto) e sua aliança de classe, para a presença do propositor (que é aquela da função-autor, a figura individual do artista). Imposição de um elemento crucial: dos inumeráveis textos inscritos na parede (e dos vídeos projetados) saía a voz – online – do próprio “propositor”. Num mesmo movimento criava-se a impressão de que a voz do artista se fazia ser ouvida, e forçava-se, no público, a abstração do fato de que o aparato vocal (tão técnico quanto ideológico) que a transmitia não era outro senão o da instituição. A reivindicação de laços sanguíneos diretos permite pensar que houve ali algo como uma evocação… branca. De um tipo que seria institucional.

Economia da experiência

A exposição – a maior realizada sobre sua carreira, em São Paulo – teve o objetivo de aproximar ainda mais o público de sua produção e oferecer uma ação educativa que enfocasse os significados de sua trajetória. Dessa forma, o instituto provou ser possível proporcionar o diálogo entre o artista e a sociedade, filiando-se a um dos principais conceitos elaborados por Oiticica, o de que a arte só se completa com a participação das pessoas.
(Catálogo da mostra).

O release institucional também fala da irradiação, realizada pela instituição, de Penetráveis pela cidade: dado empírico – ou marketing direto – da expressão “Museu é o mundo”. Frisando, com voz doce, que as obras são “bastante contemporâneas e atuais em suas propostas”. Contemporaneidade? Certamente se trata da atualidade formal dos procedimentos que a obra opera, em vista da dimensão de “participação do espectador” que permeia reconhecidamente o trabalho de Oiticica. Nas entrelinhas é possível ler “estética relacional”. Mas como tal “estética” poderia definir o “participante”, em vista dos “processos de dessubjetivação” que regem, segundo Agamben, a vida contemporânea? Ausência do político: se o autor não é senão um invólucro espectral (ao qual se pode associar a logomarca), ao participante não restaria outro papel que o de consumidor (de um produto cultural):

As sociedades contemporâneas se apresentam assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não correspondem a nenhuma subjetivação real. Daqui o eclipse da política, que pressupunha sujeitos e identidades reais (o movimento operário, a burguesia, etc.), e o triunfo da oikonomia, isto é, de uma pura atividade de governo que visa somente à sua própria reprodução.14

Participação no espelho

É por um paradoxo apenas aparente que o inócuo cidadão das democracias pós-industriais, que executa pontualmente tudo o que lhe é dito e deixa que os seus gestos quotidianos, como sua saúde, seus divertimentos, como suas ocupações, a sua alimentação e como seus desejos sejam comandados e controlados por dispositivos até nos mínimos detalhes, é considerado pelo poder – talvez exatamente por isso – como um terrorista virtual. […] Aos olhos da autoridade nada se assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum.15

Daí a necessidade do controle. O ato falho não poderia ser mais comprometedor: os espelhos, colocados pela instituição nas paredes em frente aos Parangolés (como provadores numa loja), denunciam o caráter solipsista da concepção de sujeito que regia a dimensão participativa dentro do espaço expositivo – cuja extensão seria a do mundo… No espelho, um reflexo (invertido) da “participação do espectador”. Imagem especular, que instaura um regime de complementaridade entre participação e… controle. Do sujeito-espectador ao espectro do sujeito: “meros instrumentos da função marketing”, o autorpropositor e o espectadorparticipador (polos simbióticos da participação), são os atores de uma nova “economia da experiência”, cujo funcionamento repousa

antes sobre a mercadização de toda uma gama de experiências culturais do que sobre os produtos e os serviços tradicionais fornecidos pela indústria.16

Pode-se dizer que a instituição opera abertamente – ao atribuir concomitância entre a parede branca do museu (que foi saturada de superfícies reflexivas) e o espaço aberto (mas neutralizado) do mundo – uma atualização no campo simbólico da dimensão da “participação do espectador”. E o faz ao firmar sociedade com a assinatura autoral Hélio Oiticica. Espelhamento dentro do cubo branco: retrato fiel do sujeito contemporâneo. Qual a “participação” possível dentro de um Banco? Participação nos lucros?17

Memória seletiva

Na verdade a violência política caiu em descrédito pelo fato de o Estado ter tomado nas mãos a matança e de tê-la burocratizado por meio do monopólio estatal da violência. Vivemos numa civilização da representação. A civilização cristã é a civilização da representação, do delegar, do um por todos; por todos os outros apenas um está pendurado na cruz. […] O fogo ateado no armazém [pelo grupo Baader-Meinhof] foi uma tentativa desesperada de provocar a sociedade da representação, de delegar sofrimento e de transferir a guerra do Vietnã para o supermercado.18

À “economia da experiência” soma-se uma experiência da economia. O resultado é a ausência da dimensão transgressora – política, ética e sexual – da “participação”. Sequestro do político (que desde Baudelaire é, para a arte moderna, o satânico): a participação do espectador oferecida ao público em “Museu é o mundo” foi limitada a um exemplar tardio do processo. Não a participação do período “quente”, coletivista, da cultura brasileira, referida por Oiticica no “Esquema Geral da Nova Objetividade” (1967) – que ecoava o processo de amadurecimento político das massas, abortado em 1964. Mas uma participação submetida a um processo de domesticação e de estetização. Ou antes, de positivação. Não a participação perigosa, historicamente determinada (com conteúdo de classe), da sexualidade bélica do morro e da política pulsional da luta armada – mas “um estilo de vida simpático a consumir entre outros”.19

Necrofilia é amor ao futuro

É preciso aceitar a presença dos mortos como parceiros de diálogo ou destruidores de diálogos – o futuro surge somente do diálogo com os mortos. No que se refere à arte a ilusão da identidade pessoal deve ser destruída.20

Não obstante, a evocação operada pela instituição pode ser reveladora de uma necessidade. De modo que não é apenas factível (como demonstrou a exposição) o processo de apreensão da voz que ecoa da tradição “participativa” da arte brasileira. Talvez seja exemplar. O nexo histórico no qual floresceu a obra de Oiticica merece uma reavaliação de grande porte. Urgente. Pois a evocação de Oiticica pela doxa pós-moderna diz respeito à tentativa de criar-se (ou impor) um Oiticica oficial. Um artiste. Contra o qual urge opor um outro Oiticica. Não o Autor. Mas um anônimo. No procedimento de destruição da identidade pessoal do autor reside a diferença entre o procedimento evocativo utilizado na exposição “museu é o mundo” e a tarefa que resta por fazer em relação à obra de Oiticica (e do grupo de artistas e passistas de escola samba que, entre 1964 e 69, formaram o imaginário artístico brasileiro). Contra a evocação, a necrofilia.21

Marginalia

O certo é que tanto o ídolo, o inimigo público nº 1, quanto o anônimo são a mesma coisa: a revolta visceral, autodestrutiva, suicida, contra o contexto social fixo. Esta revolta assume, para nós, a qualidade de um exemplo – este exemplo é o da adversidade em relação a um estado social: a denúncia de que há algo de podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em que vivemos.22

O procedimento necrofílico, ao contrário do evocativo, não procura “a verdade” do corpo morto. Trata-se de uma violação passional do cadáver. Assim, não é necessário demonstrar “o verdadeiro” Oiticica, de modo a fazê-lo um aliado avant la lettreainda que o seja. É preciso apenas colocar claramente as questões que fazem de sua “obra” (nossa) contemporânea. Reconhecer nela uma “imagem única, insubstituível do passado”, na qual resida a negatividade e a intempestividade da “participação”. O anacronismo íntimo do contemporâneo que aponta para fora do presente. Oiticica como aliado parcial. Apenas em sua derrota. (Que é, ainda, a nossa).


Notas

  1. Apud Michael LÖWY, Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das tesessobre o conceito de história, trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant, [trad. das teses] Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Muller, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005, p. 65.
  2. Exposição HÉLIO OITICICA – museu é o mundo, curadoria de César Oiticica Filho e Fernando Cocchiarale, 20 de março a 23 de maio de 2010, Itaú Cultural, São Paulo.
  3. Michel FOUCAULT,  « Qu’est-ce qu’un auteur? », in Dits et Écrits, Paris, Gallimard, 1994, vol. I. (O que é um autor?, trad. Antônio F. Cascais e Edmundo Cordeiro, Rio de Janeiro, Vega, 1992).
  4. Giorgio AGAMBEN, “O que é um dispositivo?”, in O que é o contemporâneo? e outros ensaios, trad. Vinícius Nicastro Honesko, Chapecó, Ed. Argos, 2009, p. 40. Segundo Foucault, citado no ensaio de Agamben, “com o termo dispositivo, compreendo uma espécie – por assim dizer – de formação que num momento histórico teve como função essencial responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função eminentemente estratégica […], que se trata, como consequência, de uma certa manipulação de relações de força, de uma intervenção racional e combinada das relações de força, seja para orientá-las em certa direção, seja para bloqueá-las ou para fixa-las e utiliza-las. O dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida, condicionam-no. Assim, o dispositivo é um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber e por ele são condicionados.” Michel FOUCAULT, Dits et écrits, v. III, p. 299-300, apud Giorgio AGAMBEN, “O que é um dispositivo?”.
  1. O mercado editorial oferece uma amostra exemplar da importância conferida na atualidade à figura do autor. Basta notar que as principais coleções e linhas de publicação sobre arte (como Taschen, Phaidon e, no Brasil, Cosacnaify) são compostas por monografias sobre artistas individuais (ou então sobre os diversos autores que compõem um movimento artístico, tal um conglomerado). Desde a década de 1980 o dispositivo autoral transbordou a figura do artista, criando diversas outras figuras hierárquicas, como, por exemplo, a do curador.
  2. Isleide Arruda FONTENELLE, O Nome da Marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável, São Paulo, Boitempo Editorial, p. 112. A “idéia de indivíduo”, continua Isleide Fontenelle, é “ela mesma, ilusória, como mostrou Sigmund Freud ao negar com sua obra a possibilidade de um sujeito totalmente autônomo. Mas que importa se essa construção era imaginária quando se sabe que são as ilusões que fazem funcionar a realidade?”.
  3. GiorgioAGAMBEN,“Oqueéumdispositivo?”,op.cit.,p.47.
  4. Idem,p.42.
  5. Para a relação intrínseca entre sujeição e a formação do sujeito individual moderno, ver Louis ALTHUSSER, Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, trad. Joaquim José de Moura Ramos (Lisboa, Ed. Presença, 1974), p. 111 e segs.
  6. Para a historicização do processo, ver Hélio OITICICA, “Esquema Geral da Nova Objetividade”, “Esquema geral da Nova Objetividade”, texto do catálogo da exposição Nova Objetividade Brasileira, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967, republicado in Carlos BASUALTO (org.), Tropicália: uma revolução na cultura brasileira, São Paulo: Cosacnaify, 2007, pp. 221-231.
  7. Para o relato completo ver DAZIBAO n. 1. Resumindo o argumento: em 1964, após o trauma do golpe, Oiticica passou a frequentar o morro da Mangueira e, em seguida, virou passista da escola de samba. Na mesma época, H.O. formulou a noção de Parangolé, objetivada em estandartes, tendas e capas, “trans-objetos” que visavam a participação do espectador. A origem social do Parangolé, de par com a subida ao Morro, articulava um conteúdo popular que se opunha à posição de classe representada pelo golpe – visto que o regime militar, no primeiro momento (1964-69), concentrara a repressão nas classes populares, deixando aberto o caminho para o desenvolvimento da oposição de esquerda no campo cultural (restrito, evidentemente, às classes altas e médias). Na contramão, a inauguração pública dos Parangolés se deu na abertura da mostra Opinião 65 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (12.08-12.09.1965), quando a ala Vê se entende da Mangueira, “gente inesperada e sem convite, sem terno e sem gravata, sem lenço nem documentos”, vestindo capas e conduzindo estandartes, forçou entrada, “olhos esbugalhados e prazerosos entrando MAM adentro” (Waly Salomão). É notável a dimensão demarcada de confronto que esta escolha carregava: uma espécie de “teste” para a participação do espectador, que nascera com o neoconcretismo (1957-62), no ambiente branco da elite carioca ilustrada. E Hélio não erra o alvo: a diretoria da instituição respondeu a altura, em face daquela ocupação que o morro realizara no museu, impedindo, a força, a entrada dos passistas. Para uma viva narração do evento, ver Waly SALOMÃO, Hélio Oiticica, qual é o parangolé?, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1996, p. 51. Ver também Paola Berestein JACQUES, Estética da GingaA arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003, p. 37-8.
  8. “Hélio Oiticica – Museu é o Mundo. Quase 120 obras do artista serão exibidas em São Paulo”, ver [online] <http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2841&cd_materia=1263v> (acesso 10.03.2010).
  9. Günther ANDERS, Conversas e Recordações, 1962.
  10. Giorgio AGAMBEN, “O que é um dispositivo?”, op. cit., p. 48-9.
  11. Idem, p. 49-50.
  12. Jeremy RIFKIN, A era do acesso: a revolução da nova economia, São Paulo, Makron, 2001, apud Otília ARANTES, “A ‘virada cultura’ do sistema das artes”, in Revista Margem Esquerda, n. 6, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005, p. 67.
  13. Ver, para uma leitura crítica da associação entre a ideologia da “participação” na arte contemporânea e a cultura administrativa do “voluntariado” das gestões empresariais da cultura, Clarissa DINIZ, “Partilha da crise: ideologias e idealismos”, in Revista Tatuí, n. 12 (Recife, 2011), p. 33-44.
  14. Heiner MÜLLER, “Prefácio”, in Bertolt BRECHT, A decadência do egoísta Johann Fatzer, trad. Christine Röhrig, São Paulo, Cosacnaify, 2002, p.15-6.
  15. Roberto SCHWARZ, “Fim de século”, in Sequencias Brasileiras, São Paulo, Cia. das Letras, 1999, p.162.
  16. Heiner MÜLLER, “Necrofilia é amor ao futuro. Entrevista de Heiner Muller a Frank Raddatz”, pub. original in Jenseits der Nation, 1990, trad. Christine Röhrig, in Revista Vintém, nº 5, São Paulo, Edições do Latão, 2004, p.35.
  17. “O fetiche do mercado da arte é o nome do mestre. Do ponto de vista histórico, talvez o maior mérito de [Eduard] Fuchs tenha sido o de ter encetado a libertação da história da arte desse fetiche do nome do mestre. Assim, podemos ler no seu livro sobre a escultura do período Tang: ‘Por isso o total anonimato das oferendas funerárias, o fato de não se conhecer um único caso de criação individual dessas obras, é uma importante prova de que nesse domínio nunca se pode falar de produção artística individual, mas sempre do modo como o mundo e as coisas eram vistas nessa altura pela totalidade da população’”. Walter BENJAMIN, “Eduard Fuchs, colecionador e historiador”, in O Anjo da História, org. e trad. João Barrento (Belo Horizonte, Autêntica, 2012), p. 162-163.
  18. Hélio OITICICA, “O Herói Anti-Herói e o Anti-Herói Anônimo”, in coluna “Artes Plásticas” de Frederico MORAIS, “Heróis e anti-heróis de Oiticica”, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 10.04.1968, 2ª Seção, p. 3, apud Luciano FIGUEIREDO (cur. e org.), Hélio Oiticica: Obra e Estratégia, cat. de exposição (MAM-RJ, Maio de 2002), Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / MAM-RJ, 2002, p.28.

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