Não comercializem Lênin! A crítica da LEF ao culto de Lênin

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Às vésperas do funeral de Lênin, em 26 de janeiro de 1924, numa sessão especial do Congresso dos Sovietes da União, “o tributo de Stalin distinguiu-se de seus colegas por uma nota fervorosa de dedicação e adoração, ainda pouco comum no vocabulário marxista ou bolchevique”.[1] Nesta sessão, Stalin liderou a adoção de duas medidas: 1) renomear Petrogrado como Leningrado e 2) fortalecer o partido com um recrutamento em massa, nomeado de “recrutamento Lênin”.

O fervoroso discurso, a renomeação de Petrogrado e o “recrutamento Lênin” foram as primeiras medidas de Stalin e do comitê central do partido bolchevique na construção do culto de Lênin. Rapidamente as imagens do recém-falecido líder bolchevique passaram a ser comercializadas em feiras e bancas de rua, ao lado dos “santinhos” da igreja ortodoxa. Lênin também foi tema de uma efusão de poemas, retratos e monumentos. Seu rosto foi estampado em jarros de porcelana, embalagens de doces e caixas de cigarro.[2] Dando sequência ao padrão de comportamento criado na semana de luto, inúmeras instituições ingressaram a seguir na corrida para levar o nome de Lênin. Iniciativas individuais também foram tomadas: meninos nascidos naquele ano receberam o nome de Vladlen ou Vladilen, assim como muitas meninas foram chamadas de Ninel (Lênin soletrado ao contrário).

Vladimir Ilitch Lênin em seu leito de morte, foto sem data (c. 1924)

Vladimir Ilitch Lênin em seu leito de morte, foto sem data (c. 1924)

Logo após a morte do líder revolucionário, foi criada uma Comissão Funerária encarregada de preservar seu corpo. Em 28 de março de 1924, a Comissão Funerária foi rebatizada de “Comissão para a Imortalização da memória de V.I. Ulianov (Lênin)”.[3] Além de preservar o corpo, a comissão teria o papel de conservar a memória de Lênin, construir um mausoléu e regulamentar o uso de sua imagem – cuja reprodução deveria, a partir de então, obter aprovação oficial. Com a seleção de artistas para a criação de bustos, quadros e medalhões de cunho oficial, o culto da imagem de Lênin tornou-se rapidamente um campo de disputas entre os artistas soviéticos e entre os próprios membros do partido bolchevique.

Desde a revolução de outubro, em 1917, as manifestações culturais em geral e as artes visuais em particular desempenharam um importante papel na Rússia bolchevique. No entanto, se durante a guerra civil (1918-1921) os artistas de vanguarda gozavam de grande apoio e liberdade por parte do governo, no período da Nova Política Econômica (NEP: 1921-1928) pôde-se constatar um agressivo retorno ao figurativismo e à “arte de cavalete”, com respaldo oficial.

Sergey Merkurov, Máscara mortuária de Lenin, 1924

Sergey Merkurov, Máscara mortuária de Lenin, 1924

Adotada em março de 1921, no X Congresso do partido, a NEP foi um giro radical na política econômica russa. Após o término da guerra civil (1918-1921), a Rússia estava devastada econômica e politicamente, o que levou a um recuo da política econômica bolchevique do “comunismo de guerra”.[4] A NEP reestabeleceu uma série de elementos capitalistas, como, por exemplo, a remuneração salarial, a exploração e submissão do operariado e o capital privado na indústria e no comércio (empresas que haviam sido confiscadas poderiam ser arrendadas de volta por empresários individuais). Além da dinamização da economia, a NEP possibilitou o retorno de uma espécie de burguesia, os Kulaks (no campo) e os Nepmen (na cidade).[5]

No campo cultural e ideológico, paralelamente ao crescente controle estatal da esfera das artes e cultura, verificou-se também a instrumentalização das variadas formas de expressão visual como estetização e força motriz das medidas políticas e econômicas stalinistas. Stalin se apropriou de argumentos defendidos por Lênin e da própria imagem do líder bolchevique, para atrelar definitivamente arte, cultura e imprensa à propaganda partidária.[6]

Frente de Esquerda das Artes (LEF)

A questão é, portanto, assim: ou cultivar uma arte burguesa, reacionária, que retrocede, ou, no limite das possibilidades, construir uma arte própria, que transforme o modo de vida, juntamente com a edificação social.[7] (Boris ARVATOV, Arte e produção, 1926)

Aglutinados em torno de Maiakovski (1893-1930), após o desmantelamento da Oposição Operária (1920-1921)[8] e a adoção da NEP, alguns integrantes das vanguardas artísticas russas montaram o grupo LEF.[9] Longe de ter apoio da direção bolchevique, o LEF constituiu-se como uma espécie de “resistência de esquerda”,[10] composta por inúmeros artistas (cineastas, fotógrafos, pintores, escritores, etc.) que buscavam desenvolver uma arte cuja gramática estivesse ligada aos princípios da Revolução de Outubro. Os lefistas atuaram ativamente na produção de cartazes, decorações de praças e criação de organizações e entidades artísticas estatais.

Os primeiros números da revista LEF, 1923

Os primeiros números da revista LEF, 1923

Apesar da heterogeneidade dos artistas (futuristas, construtivistas, formalistas, etc.) que formaram o LEF, o grupo adotou como plataforma comum o produtivismo – resultado da correlação de três forças principais: 1) a revolução artística que sancionou a passagem da “representação” à “construção”; 2) a Revolução social, que impôs uma reorganização total da vida; 3) e a revolução técnica que introduziu novas formas materiais na vida cotidiana. Como resultante dessas três forças, a plataforma produtivista propunha o fim da assim chamada “arte de cavalete” (que era o modo como os lefistas chamavam as formas artísticas tradicionais, pré-revolucionárias ou burguesas), por meio da dissolução da arte no processo de produção da vida. O teórico produtivista Nicolai Tarabukin, em seu texto Do Cavalete à Máquina (1923),[11] descreveu esse processo da “morte da arte”, proclamada pelos construtivistas, não como sua destruição, mas como um desenvolvimento histórico e reflexivo da atividade artística,[12] decorrido do próprio esgotamento das formas artísticas burguesas e pautado pelas demandas sociais da sociedade revolucionária em construção.

A arte na produção

Imaginemos, por fim, para variar, uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção comunitários e despendem conscientemente suas muitas forças de trabalho individuais como uma forma de trabalho social. (…) As referências sociais das pessoas a seus trabalhos e a seus produtos de trabalho permanecem aqui transparentes, tanto na produção quanto na distribuição.[13] (Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, 1852)

O objetivo central da plataforma produtivista era transformar a fábrica em um centro de pesquisas, estimulando a criatividade dos trabalhadores, a fim de reformular as práticas coletivas do setor produtivo.[14] Conforme os produtivistas, ao se inserir nos processos de produção, os artistas revolucionários (artistas-engenheiros) transformariam, por meio da arte, as relações de produção e as relações sociais decorrente destas. A proposta de uma arte inserida na produção (produtivismo) estaria diretamente relacionada à noção de “encomenda social”, segundo a qual o artista deveria compreender as demandas de seu momento histórico e de sua classe social (proletariado e campesinato) e, de acordo com tais demandas, programar a obra em função do papel (político) que esta desempenharia na construção da vida material e edificação do novo byt (modo de vida cotidiano) e do “psiquismo revolucionário”.[15]

É importante ressaltar que de forma alguma a noção de “encomenda social” corresponderia à “submissão a diretivas exteriores – políticas – ou encomenda formal de uma instituição, partido ou de um organismo de Estado”.[16] “Encomenda social” tampouco seria a opinião pública ou a vox populi, visto que, para os lefistas, a arte revolucionária deveria precisamente incidir sobre e modificar as mentalidades, atacar as ideias recebidas. Como descreve uma resenha crítica de O Encouraçado Potemkin (1925) de Sergei Eisenstein, publicada na Kino Gazeta em 1926, a “encomenda” do filme não surge “no gabinete de um diretor de estúdio, nem em uma comissão de Estado”, o artista recebe sua encomenda junto à revolução proletária, no curso da qual ele se tornou um artista. Essa demanda social não chegou até ele na forma de uma resolução ou proposta de […obra], mas como processo orgânico de evolução da Revolução e da [sua própria] evolução.[17]

O culto de Lênin

O culto da imagem de Lênin em particular vai incrivelmente longe aqui [em Moscou]. Existe uma loja na Kusnetzky most especializada em Lênin, onde se pode encontrá-lo em todos os tamanhos, poses e materiais.[18] (Walter Benjamin, Diário de Moscou, 1926)

As atividades de agitação e propaganda tinham importância central na política bolchevique. Durante o período da guerra civil (1918-1921), elas foram direcionadas à defesa da Revolução e à luta contra um inimigo comum. No entanto, com o término da guerra civil, o partido e os propagandistas do governo vinham lamentando sua dependência da propaganda negativa – de ódio ao inimigo de classe –, e buscavam uma força positiva em que pudessem concentrar seus esforços. A morte de Lênin veio preencher esta lacuna.

Sergei Merkurov, Monumento para o Soviete Supremo da URSS (Lênin), Kremlin, 1939, escultura em mármore.

Sergei Merkurov, Monumento para o Soviete Supremo da URSS (Lênin), Kremlin, 1939, escultura em mármore.

O culto à figura de Lênin envolveu todos os âmbitos da vida russa e proporcionou aos setores dominantes da direção do partido bolchevique um símbolo unificador, que podia inspirar lealdade enérgica durante o período de potencial instabilidade política, como foi o interregno que se seguiu à morte de Lênin[19] – período marcado, na cúpula do Partido, pelos debates relativos à linha política a ser adotada pelo partido na sucessão (de um lado os adeptos do “Socialismo num só país” defendido por Stálin e, de outro, os adeptos da “Revolução Permanente” defendida por Trotsky).[20]

A crítica da LEF

É apenas a relação social determinada dos próprios homens que assume aqui a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar uma analogia, daí devemos escapar para a região nebulosa do mundo religioso. Aqui os produtos da cabeça humana parecem dotados de vida própria relacionando-se uns com os outros e com os homens em figuras autônomas.[21] (Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, 1852)

As medidas tomadas para a eternização e canonização de Lênin – principalmente a conservação de seu corpo embalsamado – não eram consensuais dentro do próprio partido bolchevique. Entre as vozes dissidentes estava a da viúva de Lênin, Nadehda Krupskaia (1869-1939), que lançou uma nota no Pravda (30 de janeiro de 1924) criticando a proposta: “não deveríamos venerar o corpo do camarada Lênin, mas a sua causa!”.[22]

O culto da imagem de Lênin gerou muitos debates também no campo artístico. Se, por um lado, artistas como Sergei Merkurov (1881-1952)[23] disputavam pela incumbência de produzir bustos e estatuetas de Lênin, por outro lado, artistas ligados ao LEF denunciavam a “canonização” e a comercialização de Lênin. No editorial da revista “Lef” de 1924, Maiakovski, na época editor da revista, publicou a seguinte denúncia:

Nós somos contra isso.

Nós concordamos com os trabalhadores da estrada de ferro de Kazan RR, que pediram a um artista que decorasse o salão Lênin de seu clube sem bustos e retratos de Lênin, dizendo: “nós não queremos ícones”.

Nós insistimos:—–

Não façam Lênins em série.

[…]

Sigam as lições de Lênin, não o canonizem.

Não criem um culto em volta de uma pessoa, que durante toda sua vida lutou contra qualquer tipo de culto.

Não comercializem Lênin em artigos deste culto.

Não comercializem Lênin!

(Lef, n. 1, 1924)

A crítica do LEF ao culto de Lênin pode ser lida em termos próximos à crítica que os lefistas faziam à AkHRR (Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária), ao “realismo heroico” e à “arte de cavalete”.[24] Para eles a proposta de um “realismo heroico” seria uma incoerência e um retrocesso frente à tarefa, ainda não concretizada, da revolução artística. Seria também um erro político do poder bolchevique privar-se de um instrumento tão importante quanto a arte na luta ideológica. “Seria possível uma NEP cultural, quando na frente da arte a revolução não está realizada?”.[25] Em síntese, os lefistas criticavam dois pontos centrais: a forma artística adotada (contemplativa, sacralizante) e a comercialização da imagem de Lênin.

Para os produtivistas, a “cultura material” de uma sociedade seria responsável pela formação do tipo cultural da mesma.[26] Nestes termos, a canonização e comercialização de Lênin representariam a manutenção de forças extraordinariamente conservadoras – justamente o byt e o “psiquismo” pré-revolucionário. O corpo embalsamado, a comercialização de bustos em bronze, as “pinturas sintéticas”,[27] as estatuetas e os “santinhos” com a imagem de Lênin retomariam formas artísticas pré-revolucionárias e fetichistas, e teriam como modelo o ícone (pintura sacra ortodoxa).

Para os lefistas, com a Revolução de Outubro, o ícone e as formas artísticas de “cavalete” teriam perdido sua razão de ser, pois o processo revolucionário teria anulado a exigência de criar um mundo imaginário que ajudasse a superar a mediocridade da vida.[28] Neste sentido, a arte revolucionária deveria ultrapassar as formas contemplativas e ligar-se estreitamente à prática social, se transformando em uma arte de influência social. A arte deveria aspirar suscitar ações determinadas, concretas.

Para os lefistas, as formas artísticas contemplativas propagadas pela AKhRR e pela “Comissão para a Imortalização…”, assim como a NEP no plano econômico, reestabeleciam e fortaleciam as relações de produção e o byt capitalista. A “arte de cavalete”, mesmo abordando temáticas revolucionárias, corroboraria com um esquema fetichista no qual a divisão social do trabalho e a recepção passiva, contemplativa e mediada da vida seriam fortalecidas.[29]

Segundo os princípios lefistas, a arte que objetivasse homenagear Lênin e dar sequência aos seus ensinamentos e à própria revolução bolchevique jamais poderia consistir em transformar pessoas em espectadoras alheias ao processo de produção. Muito pelo contrário, ela consistiria no “domínio [coletivo] do que antes era propriedade particular dos especialistas da arte”[30] e no envolvimento das massas no processo de ‘criação’ – conforme a crítica dos lefistas ao culto de Lênin e a AKhRR, tal envolvimento das massas, ao contrário, estava sendo usado sistematicamente por indivíduos na condução de liturgias.[31]

O clube de trabalhadores

O essencial reside no seguinte: qual o sistema de administração que assegura maior liberdade às capacidades criadoras da classe na República operária, na fase de implementação de bases econômicas? Um sistema burocrático de estado ou um sistema baseado numa larga autonomia do operariado?[32] (Alexandra Kollontai, Oposição Operária, 1921)

Entre 1924 e 1925, Rodchenko elaborou um projeto de construção funcional de um clube de trabalhadores (fig. 2-8), para ser apresentado na Éxposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, em Paris. O projeto de Rodchenko era composto por uma mesa central com 6 cadeiras, um palanque que servia também para projeções cinematográficas, uma estante de livros, um arquivo e uma mesa de xadrez. Os clubes de trabalhadores eram associações de lazer, formação e politização surgidas logo após a Revolução de outubro (1917), por iniciativa dos próprios trabalhadores e não do governo[33].

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Alexander Rodchenko, Clube de trabalhadores, apresentado na Éxposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, Paris, 1925

Alexander Rodchenko, Clube de trabalhadores, apresentado na Éxposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, Paris, 1925

O clube proposto por Rodchenko apresentava em termos práticos uma nova organização da vida material. Conforme a lógica produtivista, o projeto contava com uma rigorosa racionalização do espaço, dos materiais e da função social-ideológica do clube. As cores, das paredes e dos móveis, retomavam o padrão do “construtivismo de laboratório” (branco, vermelho e preto) e eram utilizadas para delimitar os espaços e os usos multiplicados dos mesmos. Os móveis eram multifuncionais e retráteis (em resposta à demanda por espaço e de moradia), construídos com formas simples, de fácil fabricação e em madeira (material abundante e econômico, na época) e dispostos de modo a gerar uma maior interação, que envolvia a participação ativa (em contraposição à atitude contemplativa diante dos ícones, por exemplo) e coletiva (visando a construção de um novo byt e de um novo psiquismo) dos trabalhadores.

Segundo Rodchenko, a produção de um barco, uma casa, um poema ou um par de botas deveria ser regida pela mesma lei de ‘economia’ e de limitação material.[34]  (Durante a guerra civil (1918-1921), haviam surgido na Rússia diversas experiências de habitações coletivas. Tais experiências respondiam tanto à carência material[35] quanto à demanda de novas formas de socialização – e foram pautadas por discussões acerca da superação do núcleo familiar patriarcal burguês, da libertação da mulher e de novas formas de divisão social do trabalho doméstico).[36] Neste sentido, enquanto um protótipo, o projeto de clube de Rodchenko conjugava tanto as discussões construtivistas-produtivistas sobre o “objeto socialista” (um objeto programado em função de seu valor de uso e de sua tarefa da reconstrução do ‘modo de vida’ e do novo psiquismo) quanto as discussões, também construtivistas-produtivistas, sobre a economia de materiais.

Modelos de móveis multifuncionais, página interna da revista LEF, n. 3, 1923

Modelos de móveis multifuncionais, página interna da revista LEF, n. 3, 1923

O projeto partia das condições e necessidades materiais (economia e otimização do espaço e da matéria prima visando um maior valor de uso) e buscava estabelecer uma nova sociabilidade (pautada no uso coletivo e dinâmico do espaço). Na linha das discussões construtivistas, o projeto também buscava evidenciar o processo de sua própria produção. Cada móvel individualmente e a sua disposição no espaço exigiam a manipulação e a sociabilização. Um pequeno armário retrátil, por exemplo, poderia se transformar num palanque ou numa tela para afixar cartazes e fazer projeções cinematográficas. Devido às suas qualidades retráteis, os móveis poderiam ser dobrados e realocados de modo a aumentar as áreas livres e a circulação dos frequentadores no espaço. Dobradiças e peças constitutivas do mobiliário eram explicitadas de modo a proporcionar a manipulação intuitiva e multifacetada de cada objeto – ou seja, a compreensão da dinâmica de seu funcionamento e de sua própria feitura.

Alexander Rodchenko, Desenho para um pódio dobrável, com tela de cinema, para o clube de trabalhadores, 1924

Alexander Rodchenko, Desenho para um pódio dobrável, com tela de cinema, para o clube de trabalhadores, 1924

Alexander Rodchenko, Pódio dobrável, com tela de cinema, para o clube de trabalhadores, 1924, remontagem do Kunstmuseum Liechtenstein, 2015

Alexander Rodchenko, Pódio dobrável, com tela de cinema, para o clube de trabalhadores, 1924, remontagem do Kunstmuseum Liechtenstein, 2015

Cabe mencionar que os projetos contrutivistas-produtivistas de móveis multifuncionais e retráteis são anteriores ao projeto de clube de trabalhadores de Rodchenko. No Manifesto Construtivista, assinado por A. Gan, A. Rodchenko e V. Stepanova (1922) já estava presente a proposta de construções materiais aptas a responder às demandas de melhoria das condições da vida cotidiana dos operários (principal reinvindicação da Oposição Operária),[37] bem como a transformar revolucionariamente o byt e o psiquismo pré-revolucionários.[38]

No clube, Rodchenko retomou uma série de elementos que remetiam a propostas, ações e práticas de Lênin, como por exemplo: a mesa para o jogo de xadrez (após Outubro, o partido incentivou a popularização do xadrez); os cartazes das campanhas de eletrificação e alfabetização (iniciativas políticas de Lênin); os jornais e livros espalhados pelo espaço.

Alexander Rodchenko, Desenhos de uma mesa de xadrez retrátil para o clube de trabalhadores, 1924.

Alexander Rodchenko, Desenhos de uma mesa de xadrez retrátil para o clube de trabalhadores, 1924.

Alexander Rodchenko, Mesa de xadrez retrátil para o clube de trabalhadores, 1924, remontagem Stedelijk Van Abbemuseum, Eindhoven, 2014

Alexander Rodchenko, Mesa de xadrez retrátil para o clube de trabalhadores, 1924, remontagem Stedelijk Van Abbemuseum, Eindhoven, 2014

Rodchenko retomou inclusive o “canto de Lênin”, uma das principais manifestações da liturgia bolchevique à qual os lefistas eram críticos. De modo genérico, o canto ou nicho de Lênin consistia numa espécie de “altar”, no qual a figura do ícone ou do Czar era substituída pela imagem, escultura ou busto de Lênin. (Depois da morte do líder bolchevique, o canto de Lênin foi adotado em quase todas as instituições estatais russas, bem como, na esfera privada, em casas e pequenos negócios). Tratava-se, no caso do projeto de Rodchenko, de uma incorporação crítica: ao invés de ser composto por um busto ou ícone a ser contemplado, como era o usual, seu canto de Lênin era composto por uma fotografia seguida de fascículos manuseáveis com a biografia do líder revolucionário.

Fotografia de Margareth Bourke-White, Esperando a sua vez (Canto de Lênin), 1931

Fotografia de Margareth Bourke-White, Esperando a sua vez (Canto de Lênin), 1931

Alexander Rodchenko, “Canto de Lênin” para o clube de trabalhadores, 1924, remontagem do Kunstmuseum Liechtenstein, 2015

Alexander Rodchenko, “Canto de Lênin” para o clube de trabalhadores, 1924, remontagem do Kunstmuseum Liechtenstein, 2015

A opção pela edição em fascículos pode ser interpretada como uma tentativa de ruptura com a unidade linear que estrutura a própria forma da biografia. Ao interferir na forma literária da biografia, fragmentando-a em fascículos manuseáveis, ressaltam-se as descontinuidades da sua matéria – a vida de um indivíduo –, expondo-a para a observação de lapsos e contradições. A suposta unidade psíquica do indivíduo, criada a posteriori pelo relato biográfico, fica relativizada – pelo menos na sua forma ou meio de apresentação, uma vez que cada leitor pode ler, pegar, mexer, mudar de lugar os exemplares. No contexto do clube de trabalhadores, a apresentação em fascículos pressupõe que diversas pessoas podem ler simultaneamente capítulos diferentes, ensejando a comparação e a discussão – que conflita com o caráter heroicizante, hagiográfico, das elegias personalistas. Opondo-se à mera biografia, a biografia manuseável privilegia um formato apto à circulação, socialização e apropriação coletiva e simultânea dos textos (como é o caso da recepção do cinema, do jornal e das séries fotográficas), pouco afeito à recepção passiva e aurática do material. No conjunto, a biografia manuseável, assim como o xadrez, a tela de cinema, os jornais e livros, eram instrumentos pensados para estimular a formação política, favorecendo a expansão cognitiva e o pensamento crítico do proletariado.

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Alexander Rodchenko, Desenhos de detalhes e móveis do “canto de Lênin” para o clube de trabalhadores, 1924.

Alexander Rodchenko, Desenhos de detalhes e móveis do “canto de Lênin” para o clube de trabalhadores, 1924.

Ao Comitê Central do futuro ofuscante

Conforme registrado em documentos de época (textos, relatos e diários) e em debates internos, a partir de 1921, com o fim da guerra civil (e a vitória do campo revolucionário), a liderança bolchevique falava da NEP como uma espécie de termidor autoinduzido.[39] À guerra civil seguiu-se, nos primeiros meses, um novo período de instabilidade, marcado pela continuidade da ameaça branca, pela deflagração de greves operárias, pelo levante de Kronstadt e pela constituição da oposição operária. Nesse contexto de instabilidade, Lênin teria discutido junto à membros do politburo o termidor como recurso da ditadura do proletariado – isto é, como uma guinada à direita dirigida pelo próprio partido bolchevique que visava assegurar as conquistas da revolução proletária. Nas palavras de Lênin:

Não devemos nos deixar ser guilhotinados. Devemos, nós mesmos, fazer um Termidor.[40]

Nos debates mencionados anteriormente, apesar da Nova Politica Econômica (NEP) ser apresentada como uma guinada à direita induzida e controlada pelo partido (um passo para trás, que supostamente o impulsionaria para frente), também constava a preocupação sobre os refluxos que o retorno de elementos capitalistas poderia gerar. De fato, os retrocessos do byt nepista foram discutidos por membros do politburo e denunciados amplamente por militantes operários que se desfiliaram do partido e apelidaram a NEP de “Nova Exploração do Proletariado”.[41]

Assim como no prefácio da Lef (no 1, 1924), os lefistas se alinharam aos proletariados em suas denuncias à NEP e ao novo byt nepista. Neste sentido, o projeto de clube dos trabalhadores de Rodchenko poderia ser lido não só como uma alternativa crítica ao culto de Lênin, mas como uma oposição aos rumos da arte e aos rumos da própria revolução após 1921 – contra a NEP, no plano econômico, e contra a “NEP cultural”, no plano artístico e cultural (marcado pela adoção de práticas e técnicas artísticas tradicionais, “de cavalete”, como no caso do “culto de Lênin” e do realismo heroico).

Frente às propostas de uma arte contemplativa, fundada em sua dimensão ritualista e aurática (nos termos de Walter Benjamin)[42], o clube de trabalhadores de Rodchenko radicaliza a disputa pela representação de Lênin na medida em que se contrapõe discursiva e materialmente aos mecanismos políticos e ideológicos que constituem o culto de Lênin. Na forma de uma homenagem produtivista aos ideais do revolucionário morto, na tentativa de garantir que Lênin não seria reificado como um kitsch político ou ritualizado como um falso ícone, o lefista se coloca ao lado dos trabalhadores “da estrada de ferro de Kazan RR”. “Pois a luta revolucionária”, como notou Benjamin (1934), “não é uma luta entre o capital e o espírito, mas entre o capital e o proletariado[43]”.

Na linha do apelo de Krupskaia contra a veneração ao cadáver de Lênin, o clube de Rodchenko seria um espaço no qual o líder revolucionário e os seus ensinamentos estariam disponíveis para estudo e imbricados em práticas cotidianas de expansão dos horizontes cognitivos e culturais da classe trabalhadora. Ao retomar um tipo de espaço social de encontro que havia sido espontaneamente formado pela classe trabalhadora no início da revolução, pode-se entrever uma tentativa de resgate dos próprios ideais de classe que haviam realizado a revolução, e que poderiam influenciar nas direções da mesma naquele momento em que o partido bolchevique “induzia” por dentro seu próprio termidor.

Ao Comitê Central

                         do futuro

                                     ofuscante,

   sobre a malta

                     dos vates

                              velhacos e falsários,

  apresento

              em lugar

                        do registro partidário

  todos

        os cem tomos

                           dos meus livros militantes.

(MAIAKOVSKI, 1929-1930)


Notas

[1] Isaac DEUTSCHER, Trotsky: O profeta desarmado (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966-68), p. 68.

[2] Ver Nina TUMARKIN, Lenin lives! the Lenin cult in Soviet Russia (Cambridge, Harvard University Press, 1997). p. 232.

[3] Leah DICKERMAN, Aleksandr Rodchenko’s Camera-Eye: Lef Vision and the Production of Revolutionary Consciousness, tese de doutorado (Nova Iorque, Departamento de Filosofia/Universidade de Columbia, 1997), p. 75-76.

[4] “Comunismo de guerra” foi o nome empregado para designar as medidas econômicas e politicas bolchevique do período da guerra civil russa – como as requisições forçadas de alimentos no campo. O “comunismo de guerra” visava o suporte e a manutenção do aparato militar e industrial voltado à defesa da revolução (guerra civil). Ver Leon TROTSKY, A revolução traída, trad. Henrique Canary, Rodrigo Ricupero, Paula Maffei (São Paulo, Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005), p. 51.

[5] Ver Pierre BROUÉ, O partido Bolchevique, trad. Henrique Canary e João Simões (São Paulo, Sundermann, 2014); Walter BENJAMIN, Diário de Moscou [1926-1927] (São Paulo, Companhia das Letras, 1989); Thyago M. VILELLA, O Ocaso de Outubro: o Construtivismo Russo, a Oposição de Esquerda e a Reestruturação do Modo de Vida, dissertação de mestrado (São Paulo, PPGAV-USP, 2014), disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-02032015-104723/pt-br.php>.; Thomas Marshall TWISS, Trotsky and the problem of soviet bureaucracy, tese de doutorado (Pittsburgh, University of Pittsburgh,2009), disponível em <http://d-scholarship.pitt.edu/7502/1/twisstm_etd2009.pdf>.

[6] Ver Clara FIGUEIREDO, Foto-Grafia/ o debate na Frente de Esquerda das Artes, dissertação de mestrado (São Paulo, PPGAV-USP, 2012), disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-05032013-110221/en.php>.

[7] Boris ARVATOV, Arte produzione e rivoluzione proletária [1926] (Roma, Guaraldi Editore, 1973), p. 92.

[8] Sobre a Oposição operária, ver Alexandra KOLLONTAI, Oposição Operária 1920-1921 [1921] (São Paulo, Global Editora, 1980).

[9] Entre outros, foram integrantes do LEF: Vladimir Maiakovski, Osip Brik (1888-1945), Boris Arvatov (1896-1940), Boris Kushner (1888-1937), Serguei Tret’iakov (1892- 1937), Viktor Chklovsky (1893-1984), Aleksandr Rodchenko (1891-1956) e Varvara Stepanova (1894- 1952). Na órbita do LEF encontravam-se também Serguei Tarabukin (1899-1956), Vladimir Tatlin (1885-1953), Gustav Klutsis (1895-1938), Serguei Eisenstein (1898- 1948) e Dziga Vertov (1896-1954). Ver Clara FIGUEIREDO, Foto-grafia/ o debate na Frente de Esquerda das Artes, op. cit. (2012) e Maria ZALAMBANI, La morte del romanzo: dall’avanguardia al “realismo socialista” (Roma, Carocci, 2003).

[10] No período da adoção da NEP (maio de 1921), Lênin escreveu a Anatóli Lunatcharski (na época comissário do povo para a Instrução) censurando a publicação do poema “150 000 000” de Mayakovsky, bem como criticando a produção do lefista. Em Literatura e Revolução, Trotsky também tece uma série de críticas e distanciamentos em relação à produção de artistas ligados às vanguardas. Ver François ALBERA, Eisenstein e o construtivismo russo: a dramaturgia da forma em Stuttgart (São Paulo, Cosac & Naify, 2002), p. 184, e Thyago M. VILELLA, O Ocaso de Outubro, op. cit. (2014).

[11] Nicolai TARABUKIN, El último cuadro: Del caballete a la máquina/ Por una teoría de la pintura [1923] (Barcelona, Gustavo Gili, 1977).

[12] Segundo Tarabukin, depois do tríptico monocromático de Rodchenko (“Cor vermelha pura”, “Cor amarela pura” e “Cor azul puro”, 1921) a arte, tal como era entendida pela burguesia, enquanto forma que se justificava no reconhecimento autoral burguês, estava morta. Dessa morte, surgiria uma nova arte, uma arte justificada socialmente. Ver Nicolai TARABUKIN, El último cuadro, op. cit. [1923], p. 37.

[13]  Karl MARX, O 18 Brumário de Luís Bonaparte [1852] (São Paulo, Boitempo, 2006), p. 88.

[14] Os teóricos produtivistas acreditavam que o modo de produção socialista deveria coordenar a forma dos produtos com a forma ditada pelo consumo funcional e prático dos mesmos. Isto é, o projeto produtivista objetivava “superar o valor de troca da mercadoria, contemplando somente o valor de uso. É um projeto que prevê a abolição do mercado como fase intermediaria”. O processo de produção e circulação estaria pautado num novo tipo de “relação simples entre o homem e o seu trabalho, o homem e o seu produto”. Não seria mais o mercado a ditar as regras do processo de produção, mas sim as demandas sociais. Cf. Maria ZALAMBANI, L’arte nella produzione, op. cit. (2003), p. 120-121.

[15] “As formas materiais de cultura, precisamente como formas que são, como formações esqueléticas isoladas, representam uma força extraordinariamente conservadora, conhecida como cotidiano [byt]. Compreender as tendências do desenvolvimento material do byt significa estar apto a direcioná-las para transformá-las sistematicamente, i.e., transformar a força conservadora do byt em progressista”. De acordo com Arvatov, a “cultura material” de uma sociedade é o conjunto de objetos e de relações que a compõe. Ver Boris ARVATOV, “Everyday Life and the Culture of the Thing”, in October, 81 (Cambridge, MIT Press, Summer 1997), p. 120-121.

[16] François ALBERA, Eisenstein e o construtivismo russo, op. cit. (2002), p. 180-181.

[17] Kino Gazeta (1926) apud François ALBERA, Eisenstein e o construtivismo russo, op. cit. (2002), p. 260.

[18] Walter BENJAMIN, Diário de Moscou, op. cit. (1926-1927), p. 63.

[19] Nina TUMARKIN, Lenin lives!, op. cit. (2002), p. 207.

[20] Foge do escopo do presente texto abordar os pormenores da “luta pela sucessão de Lênin”, no entanto, cabe mencionar a complexidade dos embates e manobras políticas que antecederam a consolidação do stalinismo (entre 1924 e 1928). Conforme narra Pierre Broué, o recrutamento Lênin ocorreu paralelamente a uma depuração que tinha como alvo os integrantes da “Oposição dos 46” (1923-1924), ou “Oposição de esquerda”. (Pierre BROUÉ, O partido Bolchevique, op. cit. (2014), p.194). Entre 1923 (data do afastamento de Lênin por questões de saúde) e 1928 (data do expurgo de Trotsky e de outros bolcheviques), surgiram, no interior do partido, agrupamentos políticos (como a “Oposição de esquerda” e a “Oposição unificada”) que questionavam os refluxos da revolução, bem como tencionavam as diretrizes adotadas no campo político e econômico. Ver: Pierre BROUÉ, O partido Bolchevique, op. cit (2014), p. 221-264 e Isaac DEUTSCHER, Trotsky: O profeta desarmado, op. cit. (1966-1968), p.126-127.

[21] Karl MARX, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, op. cit. [1852], p. 69-70.

[22] Nadehda KRUPSKAIA apud Leah DICKERMAN, Aleksandr Rodchenko’s Camera-Eye, op. cit. (1997), p. 75-76.

[23] Merkurov foi o artista responsável pela mascara mortuária e pela produção serial de bustos e medalhões de Lênin. Ver Leah DICKERMAN, Aleksandr Rodchenko’s Camera-Eye, op. cit. (1997), p. 78.

[24] No campo econômico, o LEF surgiu como espaço de resistência à NEP e, no campo artístico, à imposição do figurativismo e do “realismo heroico” – um antecessor do “realismo socialista” – liderado pela AKhRR (1922-1932).

[25] François ALBERA, Eisenstein e o construtivismo russo, op. cit. (2002), p. 185.

[26] “O tipo cultural de uma pessoa é criado pela totalidade do ambiente material que a cerca, assim como o estilo cultural de uma sociedade é criado por todas as suas construções materiais”. (Boris ARVATOV, “Everyday Life and the Culture of the Thing”, op. cit. (1997), p. 120). Desta forma, a relação do indivíduo ou do coletivo com o objeto seria um fundamento determinante das relações sociais.

[27] Rodchenko utiliza o termo “pintura sintética” para ressaltar o caráter ficcional e idealizado da pintura em oposição à fotografia. Para ele, “a fotografia é uma possibilidade de momento, enquanto o retrato pintado é uma síntese de momentos observados” mediados pela interpretação e o escopo do pintor. Alexander RODCHENKO, “Against the Synthetic Portrait, For the Snapshot” [1928], in John BOWLT (ed.), The documents of 20th-century Art/Russian Art of the Avant-Gard: Theory and Criticism 1902-1934 (Nova Iorque, The Viking Press, 1976), p. 250.

[28] Ver Nikolai CHUZHAK, “Il vademecum dello scritore” [1929], in Maria ZALAMBANI, La morte del romanzo, op. cit. (2003), Apêndice 1, p. 145-161.

[29] Em “Da pintura à fotografia”, o crítico produtivista Ossip Brik afirmou que a crítica do LEF à “arte de cavalete” não era apenas uma questão de preferência estética ou de obsolescência, mas dizia respeito “a um fenômeno ideológico”. Ossip BRIK, “From the painting to the photograph” [1928], in Christopher PHILLIPS (org.),  Photograph in Modern Era (New York, Metropolitan Museum/ Art-Arperture, 1989), p. 230.

[30] Tendo em vista a noção de “encomenda social” e o posicionamento do LEF contra a NEP e os nepmen é possível supor que a crítica realizada por Tretiakov à figura dos “especialistas da arte” ecoava, no terreno das fábricas, as denúncias da Oposição Operária relativas à submissão do operariado aos gestores da NEP. Juntamente à implementação da NEP introduziu-se, nas fábricas estatais russas, a figura do “especialista” (isto é, técnicos, administradores e engenheiros provenientes da antiga burguesia russa, que não só ocupavam cargos de destaque e comando como também ganhavam salários maiores que a média do proletariado russo). Ver Alexandra KOLLONTAI, Oposição Operária 1920-1921 [1921] (São Paulo, Global Editora, 1980), p. 45).

[31] Sergei TRETIAKOV, “Art in the Revolution and the Revolution in Art (Aesthetic Consumption and Production)”, in October, 118 (Cambridge, MIT Press, Summer 2006), p. 18.

[32] Alexandra KOLLONTAI, Oposição Operária 1920-1921, op. cit. [1921], p. 45.

[33] É importante mencionar que apesar dos clubes de trabalhadores terem surgido de iniciativas difusas e autônomas da classe trabalhadora, após o VIII Congresso do Partido (1919) eles passaram a ser fomentados e financiados pelo partido bolchevique.

[34] Alexander RODCHENKO apud Dawn ADES, Fotomontaje (Barcelona, Gustavo Gili, 2002), p. 71.

[35] Em 1917, quando ocorreu a revolução, a Rússia era um país fundamentalmente agrícola com um aparato produtivo subdesenvolvido. A participação na guerra e as subsequentes medidas adotadas no “comunismo de guerra” e na guerra civil devastaram as reservas materiais e econômicas russas, nos campos e nas cidades.

[36] Críticos ao casamento e à lei familiar, como a bolchevique Alexandra Kollontai, por exemplo, viam nas experiências de habitações coletivas do período da guerra civil soluções práticas e ideológicas às demandas de ruptura do núcleo familiar tradicional burguês. “O desaparecimento do dinheiro, a organização de refeição comum e em larga escala, a fluidez das relações pessoais”, assim como a sociabilização do trabalho doméstico (habitações, lavanderias e creches coletivas e autogeridas), pareciam confluir para o estabelecimento de um novo byt e um psiquismo coletivista. Cf. Wendy GOLDMAN, Mulher, Estado e Revolução – política familiar e vida social soviéticas, 1917-1936 (São Paulo, Boitempo/Iskra, 2014), p. 232. Ver também Anatole KOPP, Arquitectura y urbanismo soviéticos de los años veinte (Barcelona, Lumen, 1974) e Thyago VILELLA, O Ocaso de Outubro, op. cit. (2014).

[37] Cf. Alexandra KOLLONTAI, Oposição Operária 1920-1921, op. cit., p. 22.

[38] Alexei GAN; Alexander RODCHENKO; Varvara STEPANOVA, “Quiénes somos. Manifestó del Grupo de Trabajo de los Constructivistas”, in Rodchenko: La construcción del future [1922] (Catalunya, Fundacion Caixa Catalunya, 2008), p. 105.

[39] “O termo ‘Termidor’ era uma referência histórica ao 9 de Termidor do Ano II da Revolução Francesa (27 de Julho de 1794) – a data em que Robespierre e seus adeptos [jacobinos] foram derrubados [pela reação girondina, pondo fim ao período do ‘Terror’ e abrindo caminho para o ‘Diretório’]. O evento marcou uma inflexão crítica na revolução, inaugurando um período de acentuado declínio na atividade política de massa e um recuo da parte do governo em relação às medidas sociais radicais. […] Muito antes da formação da Oposição Unificada, os Bolcheviques já eram assombrados pelo prospecto de que a Revolução Russa poderia experimentar um destino similar”. Thomas Marshall TWISS, Trotsky and the problem of soviet bureaucracy, op. cit. (2009), p. 250. Para um quadro geral da discussão, ver p. 249-252.

[40] Lênin, citado por Victor SERGE, Memoirs (p. 131), apud Thomas Marshall TWISS, Trotsky and the problem of soviet bureaucracy, op. cit. (2009), p. 250.

[41] Ver Thyago VILELLA, O Ocaso de Outubro, op. cit. (2014), p. 28 e Leon TROTSKY, Questões do modo de vida,  trad. A. Castro (Lisboa, Edições Antídoto, 1979), apêndice.

[42] O conceito de aura, desenvolvido por Benjamin em 1936, parece ter uma relação clara com as discussões do LEF e com o redireccionamento deste grupo para a fotografia, fotomontagem e cinema. A alta capacidade de reprodutibilidade da fotografia, discutida por Benjamin, foi central da adoção da mesma pelos lefistas. A reprodutibilidade técnica proporcionou, de um lado, o aumento de alcance e inserção das propostas da LEF nas esferas do novo byt, e de outro lado, a ruptura com as características fetichistas da pintura. Ver Walter BENJAMIN, “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” [1935], in Magia e Técnica, Arte e Política/ Ensaios sobre literatura e história da cultura/ Obras Escolhidas (São Paulo, Brasiliense, 1994), p. 168.

[43] “O escritor progressista conhece essa alternativa. Sua decisão se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca ao lado do proletariado. […] Sua atividade é orientada em função daquilo que for útil ao proletariado, na luta de classes. Costuma-se dizer que ele obedece a uma tendência” (Walter BENJAMIN, “O autor como produtor”, in Magia e Técnica, Arte e Política, op. cit. (1994), p.120). Essa noção de “tendência” apresentada por Benjamin, se aproxima muito da noção de “encomenda-social” produtivista. Aproxima-se, não só por sua reflexão sobre o papel da produção artística no terreno da luta de classes, mas também por suas reflexões acerca do caráter complexo da noção de “tendência” no âmbito da produção artística. Segundo o autor, não basta que a obra tenha um conteúdo crítico ou progressista. É necessário também que ela tenha uma forma que expresse tais características. Do mesmo modo, do ponto de vista revolucionário apresentado por Benjamin, não basta ao artista refletir apenas externamente sobre os processos de produção da vida. Seria então necessário refletir criticamente sobre os modos de inserção da arte nesse processo de produção.

 


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